Mercy Zidane: 2014

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A última conversa

Com tanto tempo juntos, já havíamos conversado sobre assuntos bem variados - de arte a revolução; de compras no mercado a video games; de sexo a séries de televisão.

Mas eles iam rareando. Tornavam-se cada vez menos confluentes e mais conflitivos, apesar do carinho e do companheirismo sempre presentes.

Numa dessas conversas (ocorrida na época dos diálogos mais intensos e simbióticos), cujo tema era a infância, falávamos sobre o dia das crianças, o Natal, os aniversários e de como era prazeroso ganhar um brinquedo muito desejado. Sorrimos, citamos brincadeiras favoritas de nossas épocas e então ela perguntou:

"Sabe quando você está na transição da infância para a adolescência e tenta brincar com o seu brinquedo predileto...  Só que não consegue mais? Apesar de já ter se divertido tanto com ele e de se esforçar para sentir o mesmo prazer de antes, ele já não tem mais graça, sabe?"

Marcamos a conversa que, sentíamos, seria a última. Um leve pânico percorreu minha espinha quando ela girou a maçaneta para entrar em casa. Sentamos no sofá.

-Acho que eu não quero mais continuar.
-Que bom que você teve coragem de dizer isso.

Doeu. Choramos, nos abraçamos e foi difícil conseguir dormir. Mas depois de desenvolvermos uma relação tão sincera e de construirmos partes importantes de nossas vidas juntos, não podíamos fingir que nada havia de errado. Não seria justo deixar o carinho impor, só por já conhecermos as regras, a brincadeira que já não dá mais prazer.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dona Lourdes e o samba de breque

Aos 90 anos, a professora aposentada Maria de Lourdes Pinheiro da Silva (que é minha avó materna) cultiva o hábito de cantarolar músicas de sua infância, as únicas que ainda tem na ponta da língua.

Eu já tinha visto suas performances por várias vezes e, neste Natal, pensei que não poderia deixar passar a oportunidade de gravar alguma delas.

Pois bem, mesmo sem tripé, com iluminação ruim e usando a captação de áudio da própria câmera, editei um videozinho que, se peca em alguns quesitos técnicos, não deixa de mostrar a essência da coisa: a alegria de se fazer algo que dá prazer.

Minha avó resume a ideia com uma frase simples: "Canto porque gosto de cantar". Veja:


quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Don't be sad



Agora que eu tenho um cajón, eu precisava de uma desculpa para testar o som dele em gravações. Então parei e pensei que eu nunca postei qualquer música minha aqui no blog. Tomei coragem e gravei uma canção que compus ao longo do ano.

Ela fala sobre duas pessoas - a primeira tenta, de um modo sincero (mas com poucos argumentos), alentar a segunda.

Esteticamente, a canção só tem a pretensão de ser simples. A letra é em inglês porque foram as palavras dessa língua que apareceram na cachola quando eu cantarolava. Gravei tudo toscamente na minha casa, mas foi com o coração rs. Chega de papo, aí vai:



Metalinguagem: o desenho que fiz para ilustrar a música, para os que não perceberam, é um cajón rs

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não podem arrancar esse prazer de nós

Tem uma porção de gente no mundo. E apesar dos milhares de problemas do viver, que fazem os sorrisos rarearem conforme a idade avança, uma parte desse pessoal todo já deve ter se surpreendido com um prazer repentino surgido numa atividade despretensiosa.

Esse aí da foto é meu pai, contemplando uma das últimas músicas tocadas por Paul McCartney, na apresentação do dia 25, em São Paulo. Descobriu o prazer de "coçar a barriga da guitarra", como diria minha avó, por volta dos 14 anos. Montou bandinhas pelo bairro em que nasceu (e onde mora até hoje) e se apresentou em muitos bares "chapados de gente", como ele gosta de dizer, ao longo dos últimos quarenta e poucos anos. As canções dos Beatles, principalmente da fase mais pop da banda, permearam o início de sua adolescência e marcam presença no repertório de seus grupos até hoje - e claro, também nas suas mais doces lembranças.

Se alguém diz que ele está velho para isso, que tinha de se concentrar no trabalho e em pagar as contas e dívidas ou que essa vida traz o cigarro e a bebida (confesso, como um filho mais chato e responsável que o pai, já fiz algumas dessas críticas), ele responde de bate-pronto: "Eu vou morrer tocando"!

Não sei no que meu velho estava pensando quando minha irmã tirou essa foto. Mas ao olhá-lo nessa posição, após ter se emocionado tanto no show, pensei algo como: a vida é tão difícil. Vendem-nos sonhos e, quando acreditamos neles, são arrancados de nós. Muitas vezes, ele está certo... Só com cachaça pra aguentar tanta coisa que a gente não queria. Só que por mais que essa seja a regra na vida, tem certos prazeres que vão morrer com a gente.

Na saída do show, empolgado e aos 62 anos, ele me perguntou: "Filhão, vamos montar uma banda"?

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A emoção daquele canto da Barra Funda

Quando eu era moleque, desenhava o estádio Palestra Itália, casa do Palmeiras, mais ou menos do jeito que tá aí em cima. As bolinhas representavam as cabeças dos trinta e poucos mil torcedores que lotavam as arquibancadas do velho estádio, palco de tantos jogos importantes do time que ganhava tudo nos anos 90.

Depois de sonhar tanto em conhecê-lo, só fui subir os degraus de suas arquibancadas em 1998, no jogo da primeira fase da Copa do Brasil (da qual seríamos campeões), contra o CSA de Alagoas. Foi 3x0, com dois gols de Arce (ambos de falta) e Cléber. Fazia um mês que o palestrino mais "verde" que eu conhecia havia falecido: meu avô Gilberto José Cerri. Foi a forma que eu e meu pai encontramos para homenageá-lo.

Só fui retornar ao Palestra em 2006, num despretensioso jogo do Paulistão, contra a Portuguesa Santista. Eu já contava 20 anos e me emocionei com cada um dos gols do 4x0, ainda mais com a presença de Edmundo no comando do ataque, que marcou seu tento no goleiro Ronaldo (aquele ex-Corinthians).

A partir de então, mesmo morando longe de São Paulo, eu sempre dava um jeito de fazer algumas visitas ao "jardim suspenso" ao longo do ano - elas se intensificaram quando voltei a morar na região.

No total, fui a 23 jogos no antigo Palestra. Vi poucos craques de seleção e muitos perebas, de 2006 a 2010. Nada muito diferente dos quatro anos e meio em que passamos por Pacaembu, Canindé e Arena Barueri.

Mesmo assim, a emoção de entrar pelo portão da Turiassu, passar pelo fosso e subir correndo os degraus para ver o símbolo do Palmeiras sobre o jardim suspenso, com os olhos já marejados... Eu nunca senti em outro lugar.

Hoje voltaremos para casa. Se vamos vencer, não sei. Mas eu e meu pai estaremos lá, lembrando dos bons tempos, do meu avô (que nos fez palmeirenses), também esperançosos com o futuro e sentindo a emoção que só ali, naquele canto da Barra Funda, um palestrino pode sentir.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Tirinha hipnótica nº 2 - Volume morto

Clique na imagem para ver em alta resolução. Gostou? Confira a outra tirinha hipnótica clicando aqui.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Tão clichê quanto mar e paixão



Era jovem, mas a vida na cidade e as obrigações que deixavam suas costas cada dia mais curvas fizeram-no ficar mais de quatro anos sem ver o mar. Lembrava-se das poucas praias que havia visitado e de suas belezas particulares, mas isso era raro - só quando alguém comentava sobre viagens de férias ou de fim de ano.

Naquele dia, cinzento como os últimos, recusou convites dos amigos para ir ao bar após o trabalho. Bateu o ponto, pegou a condução e, por não saber o que fazer, vagou pelas ruas do bairro tentando observar com o olhar mais atento o entorno tão rotineiro. Não conseguiu. "O que eu tô tentando fazer"?

Voltou para casa e, em mais um gesto automático, ligou a tevê. Zapeou os canais sem prestar atenção, até que se atraiu pela beleza da atriz principal de um filme nacional antigo, em preto e branco. Pegou no sono e acordou às 4h30, assustado, com o controle remoto na mão.

No sonho que tivera, deparava-se consigo próprio. Seu outro "eu", abatido, não esboçava reação a nenhum estímulo. Quando se preparava para socar seu semelhante, viu o interlocutor se transformar em uma mulher alta, que o beijou de forma ardente. O prazer virou medo quando, num instante, ela cresceu e o engoliu. Sentiu o frio na barriga da queda livre até perceber que estava molhado. E boiava no mar.

Sorriu. Com o coração quente, levantou-se do sofá e saiu correndo em direção à rodoviária. Pegou o primeiro ônibus com destino ao litoral.

Seu semblante misturava ansiedade e alegria. Cada curva do caminho, cada ouvido tampado e cada cheiro de maresia aumentavam seu sorriso.

Ao chegar, transpôs três quarteirões correndo como uma criança, já com lágrimas nos olhos, em direção à praia. A camisa ficara pelo caminho, assim como os sapatos. Quando não havia mais nenhum obstáculo entre ele e o mar, parou na beira, sem deixar seus pés se molharem. Visivelmente emocionado, observava, estático, o objeto de sua saudade.

Uma moça, intrigada com o que via, perguntou ao rapaz se ele estava bem. Ele respondeu:

-Sabe? Quando a gente fica muito tempo sem ver o mar, por mais que se lembre do barulho das ondas, da areia fina nos pés, da indistinção dos azuis no horizonte, por mais que racionalmente esteja tudo lá na nossa cabeça, quando damos de cara com sua grandeza que nos abraça e envolve todos os nossos sentidos, é como se fosse a primeira vez. É tão bom quanto da primeira vez. A memória não dá conta dessa imensidão que puxa a gente e escancara nossa pequenez ao mesmo tempo em que nos hipnotiza com o vaivém das ondas. Mostra a nossa insignificância enquanto percebemos como é bom... Como é bom estar vivo. E mesmo que por um pequeno instante, dá sentido à nossa vida.

E correu para os braços molhados e quentes da paixão.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Exalando


sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Em cima do muro?

Tirinha autoral que contempla minha posição - ela está mais bem desenvolvida neste artigo aqui, com o qual tenho pleno acordo.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O que faltou para a esquerda nas eleições?

O resultado para a esquerda partidária após o fim do primeiro turno das eleições 2014 não foi muito significativo - algo que poucos imaginariam um ano atrás, com a expressão massiva da falta de representatividade que marcou os protestos de junho.

Apesar de ter havido a "pulverização" do movimento (principalmente em São Paulo) a partir do momento em que ele passou a repercutir mais na mídia, as pautas originais eram de esquerda e muitos jovens mostravam descontentamento com serviços sociais precários, exigindo não só a redução da tarifa de ônibus, mas melhores condições de saúde, educação e moradia para toda a população.

E aquele junho não terminou no fim do mês. Protestos menores continuaram e muitas greves entraram em pauta, com novidades importantes nelas. Os grevistas passaram por cima da burocracia de sindicatos (que normalmente freia mobilizações mais radicais) e exigiram as condições de trabalho que realmente julgavam justas, não as que os diretores do sindicato pelego haviam combinados com os patrões. Rodoviários de Porto Alegre e de São Paulo fizeram movimentos desse tipo, mas o exemplo mais forte se deu com os garis do Rio de Janeiro, que conseguiram 37% de aumento.

Certo. Se tudo isso apontava para um caminho mais à esquerda, questionando o projeto petista de conciliação de classes (aquele que dá milhões aos bancos e às empreiteiras pra jogar migalhas à população, entre vários outros aspectos), por que os principais partidos da esquerda tiveram resultados de 1,55% (PSOL) e 0,09% (PSTU) na disputa presidencial? Nos pleitos para deputados e governadores, em geral, o resultado foi parecido - apesar de o PSOL ter conseguido eleger alguns representantes a mais. Quem olha de relance o resultado do primeiro turno nem se lembra de que, entre 2010 e 2014, houve um junho de 2013 no meio. Mas por quê?

Para além do ápice do desgaste que a forma de organização "partido" sofreu ao longo dos últimos anos, com muitos jovens dizendo que todos eles eram iguais (devido, por exemplo, ao abandono de princípios do PT e às falcatruas que envolvem todos os partidos da ordem), os que realmente têm diferenças não se mostraram como alternativa aos insatisfeitos - tanto é que os votos nulos, brancos e abstenções tiveram alta significativa.

O PSOL, que poderia ter sido um fenômeno, resolveu, num primeiro momento, lançar a candidatura mais à direita dentro da organização para concorrer às eleições presidenciais - Randolfe Rodrigues, a pessoa quer que o PSOL siga um caminho de alianças escusas análogo ao que fez o PT (na campanha para a prefeitura de Macapá, alguns anos atrás, fez aliança, por exemplo, com PSB). Luciana Genro assumiu a candidatura após desistência de Randolfe e foi financiada com dinheiro de uma grande rede de supermercados, a Zaffari, justamente uma medida que criticou nas candidaturas da ordem, durante os debates televisivos.

Para além disso, Luciana, que cresceu nos votos na reta final após a defesa dos direitos dos LGBTTIs, não conseguiu ligar o que defendia ao rechaço à política institucional que marcou junho e as greves. Pouco falou da necessidade de organização dos trabalhadores, de fortalecer e levar as lutas adiante para mudar o país - o que não ocorreria sequer se ela, hipoteticamente, vencesse a disputa, já que a questão não é apenas mudar quem está no poder, mas questionar o regime (dê uma olhada neste texto que traça uma linha de crítica interessante sobre a candidatura Genro).

O PSTU, apesar de ser uma organização de esquerda com mais base operária que o PSOL (e, por causa disso, ter uma organicidade maior em greves e mobilizações em geral), ficou muito preso à velha lógica pré junho em sua atuação (vide greve do metrô, quando poderia, por dirigir o sindicato, seguir o exemplo dos garis cariocas e moralizar a categoria para ir adiante mesmo com os ataques, mas teve atuação mais rotineira de "luta de calendário"). Apesar de dizer que é o partido das lutas e do socialismo, não consegue passar para a população a ideia de como é importante se organizar de forma independente.

Isso se mostra em uma certa separação entre o que é dito em programas eleitorais e materiais de propaganda com relação à atuação sindical, em que uma ilusão nos partidos da ordem é criada (na recente greve do metrô paulistano, colocaram figurões da UGT, CUT, CTB, Força Sindical e parlamentares do PSB e do PC do B para negociar com a empresa "em defesa dos trabalhadores" - ué, mas eles não representam interesses que não são dos trabalhadores? Cria-se certa confusão).

O PSTU também criminalizou desde o início a tática Black Bloc (com a qual também não concordo, mas entendo que expressou uma certa revolta dos jovens com a política institucional), chegando a negar abrigo a jovens ante a repressão no ato da esquerda de São Paulo, na abertura da Copa do Mundo.

Faltou união e organização da esquerda?

Mesmo não se mostrando como alternativa seria possível costurar alguma articulação para obter melhores resultados? É comum, principalmente depois desse tipo de fiasco eleitoral, as pessoas dizerem: a esquerda é muito fragmentada e precisa se unir para fazer uma oposição digna.

Sim, seria ótimo que houvesse união, mas não a qualquer custo. A esquerda é tão dividida justamente por que há diversos projetos que se apresentam como alternativa à ordem de coisas que está colocada hoje. Uma união meramente eleitoral significaria não discutir ou chegar a acordos em diferenças importantes (como a questão de aceitar financiamento de campanha por grupos privados ou fazer alianças locais com partidos dos ricos), mas simplesmente jogá-las para debaixo do tapete.

Houve frente de esquerda entre PSTU, PCB e PSOL, mas pouco se ouviu falar a respeito, e os candidatos a presidente saíram de forma separada. Não faltou organização - afinal, os grupos se articularam. O problema foi mais grave. Não se refletiu um programa conjunto (enquanto o PSTU defendia o não pagamento da dívida em âmbito presidencial, não fez essa denúncia em locais em que estava coligado na tal frente). Não existiu a percepção do que aconteceu em 2013 para pensar uma plataforma comum que realmente propagandeasse o que era necessário neste momento: a organização independente de trabalhadores e estudantes, em locais de trabalho e estudo, para mostrar novamente a força das ruas, rechaçando a política institucional e utilizando-a para desmascarar as grandes candidaturas e até as pequenas que tinham aparência de progressista (como a de Eduardo Jorge), mas que, na verdade, eram mais do mesmo.

Portanto, para mim, faltou à esquerda a percepção de que podia ser mais audaz e menos rotineira, mostrando suas diferenças (umas organizações têm mais e outras menos) para canalizar toda a onda de insatisfação contra os partidos da ordem e fortalecer a mobilização independente. Não percebeu, não tentou e, consequentemente, não conseguiu.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O que Levy Fidelix tem na cabeça?

O candidato à presidência Levy Fidelix deu um show de boçalidade no último debate eleitoral, incitando ódio contra homossexuais.

A charge que desenhei é uma brincadeira com a pergunta literal que muita gente deve ter feito: o que Levy tem na cabeça?

Minha posição a respeito está muito bem representada no artigo de Fernando Pardal (clique aqui e leia).

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Rotina #1

Para ver em alta resolução, clique na imagem.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

O parente do Rossi


O post que você começa a ler agora está sem ilustração desenhada porque ele tem muito a ver com a foto acima. O cara do lado direito, com toda sua formosura, sou eu. O outro é o Ubirajara, conhecido como Bira. Ele trabalha no Museu de Arqueologia Industrial e Tecnologia (Maitec), que visitei um tempinho atrás e do qual falei nesta postagem aqui.

Ele é responsável pela parte audiovisual do museu. Sua função é explicar aos visitantes como funcionavam os televisores, projetores cinematográficos, rádios e outros objetos expostos numa sala específica sobre o tema.

Chama atenção do visitante a paixão com que Bira fala sobre o funcionamento da projeção antiga, ponderando os avanços técnicos, questionando se o aumento da qualidade seria tão significativo assim e se entristecendo com a extinção de projetores antigos no Brasil (que, se bem me lembro, viria por lei - o que poderia significar o fechamento de muitos cinemas, principalmente no interior). Por fim, ele executou uma rápida projeção numa máquina bem velha, movida a diesel, antes de dar cópias dos negativos para os observadores. "Guardem porque não não vai durar muito".

Como durante a exposição Bira comentou sobre filmes antigos, ao final, me aproximei e falei para ele que eu tinha um tio avô que foi um tanto importante para o estabelecimento do cinema nacional: Gilberto Rossi (que meu pai e minha vó chamam de "Nonno").

-Você é parente do Rossi?!?!

Bira deu um pulo pra trás. Fiquei até meio sem graça com a euforia dele. Começou a me falar sobre como o Rossi foi importante. "Era um visionário!", disse, depois de explicar que meu tio avô fez livros destinados a profissionais e amadores que ensinavam a filmar em diversas situações, sem contar a qualidade das produções de que fez parte, como diretor e diretor de fotografia.

Falei da V Jornada de Cinema Silencioso, de 2011, a primeira e única vez em que vi filmes de Rossi. Se não me engano, foram três. Outra descendente do "Nonno", Claudia Agazzi, executou a trilha sonora ao vivo, tocando piano. Bira não apenas estava presente, como foi a primeira vez que projetou em uma máquina bem antiga para um público grande. 

Ficamos conversando por vários minutos, curtindo essa empatia inusitada que meu tio avô (que sequer conheci) proporcionou. Quando eu estava indo embora, ele me impediu e disse pra sua colega: "Tira uma foto minha com o parente do Rossi". Meio sem jeito eu aceitei e pedi para a moça fazer a gentileza de registrar o momento também com a minha câmera.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Contra o racismo, Aranha é muito maior que Pelé

Eu achei fantástica a atitude do goleiro Aranha, do Santos, no jogo diante do Grêmio, pela primeira rodada das oitavas de final da Copa do Brasil de 2014, no dia 28 de agosto. Após ser xingado de "macaco", "preto fedido" e por aí vai pela torcida rival, o arqueiro santista se revoltou, pediu para que os cinegrafistas filmassem os rostos dos seus agressores e deu entrevista na saída do gramado dizendo tudo o que ocorreu ao longo da partida.

O caso ganhou repercussão, o Grêmio foi justamente (em minha opinião) eliminado da Copa do Brasil. Aranha deu várias declarações em que demonstrou seu conhecimento a respeito da luta do povo negro (ele inclusive usou essas palavras) e de como era necessário o combate ao racismo. Contrariando o circo criado pela mídia para vitimizar uma das agressoras flagradas xingando-o, o goleiro se recusou a encontrá-la pessoalmente.

Eis que, num evento, perguntam a Pelé o que ele achava do caso envolvendo o goleiro do seu ex-clube. Na contramão, o rei do futebol afirma que "Aranha se precipitou em querer brigar" e que "racismo também é contra japonês". O certo, segundo Edson, seria o goleiro continuar a disputa como se nada tivesse acontecido.

Como discordo frontalmente dessa opinião e acho que o racismo deve ser combatido sempre e em qualquer circunstância e situação, fiz a charge abaixo, batizada de "Contra o racismo, Aranha é muito maior do que Pelé". Para ver em melhor resolução, basta clicar na imagem:

Observação: claro que a opinião de Pelé não tira o fato de que ele também sofreu com racismo e que todas as situações de xingamentos que ele viveu foram lamentáveis. Imagino até que sua visão é fruto de um racismo mais escancarado que existia na época em que era jogador. Mas é preciso fortalecer e não desencorajar atitudes como as de Aranha.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

O Palmeiras na vida de um torcedor


Quando me vi, quando me enxerguei como pessoa, quando dei conta de mim mesmo, da minha existência, eu já era, sei lá como, palmeirense.

Pensei que tinha começado quando meu pai me acordou de noite (eu contava cinco ou seis anos de idade) só para me presentear com um lindo uniforme pirata do Verdão - numa malha chinfrim com o logo da Coca-Cola; mas aí percebi que eu fiquei tão feliz nesse dia exatamente porque meu coração já era verde. Muito verde.

"Estranho uma paixão tão forte não ter data de início", pensei. Mas faz sentido: uma das poucas certezas que tenho é que ela não tem dia marcado pra acabar.

Ainda molequinho, na escola, a camisa do Palmeiras era meu uniforme oficial nas aulas de educação física, enquanto os outros usavam vestimenta estudantil. Se eu fosse jogar bola em qualquer outro lugar - o que era bem comum para uma criança doida por futebol, a camisa ia junto, assim como o apelido instantâneo que os desconhecidos me davam: "palmeirense". Pouco me importava que não sabiam meu nome. Nada melhor do que ser chamado de "palmeirense".

Se tinha uma aula vaga ou estávamos tomando as lições de artes, o que eu desenhava? Os diversos gols de Evair; e muitos e muitos emblemas do Palmeiras. Tanto é que a primeira carta de amor que recebi na minha vida, na primeira série, tinha um "P" estilizado - minha admiradora sabia como me conquistar.

A brincadeira favorita? Fingir que era o Velloso no gol;  bater a falta de canhota (mesmo sendo destro) só para imitar o Roberto Carlos; comemorar como o matador Evair,  após mais um gol de pênalti "trotado", contra o goleiro imaginário nas traves de paus e vasos do quintal.

Apesar de ser a principal paixão, eu não gostava só de futebol. Assistia a desenhos animados e séries japonesas. Mas por que será que eu admirava tanto o Shiryu, cavaleiro de dragão em "Os Cavaleiros do Zodíaco"? Por que eu gostava mais do Tommy, em "Power Rangers"? Sim, ambos usavam armaduras verdes.

Eu comprava histórias em quadrinhos, mas a cada título que o Palmeiras ganhava (e eram muitos nos anos 90), queria saber mesmo era da edição especial da Revista Placar e das vastas reportagens e perfis com os meus verdadeiros super-heróis. Cheguei a decorar escalações de times dos anos 70, da segunda Academia palestrina, de tanto devorar essas publicações.

Percebi que meu avô estava muito mal de saúde quando vi que ele não sabia que o Palmeiras tinha chegado à final do Brasileiro de 97. Logo ele, tão fanático... Chorei sua morte e, um mês depois, em homenagem, fui com o meu pai, pela primeira vez, ao Palestra Itália, no jogo da primeira fase da Copa do Brasil de 98 - a copa que venceríamos e que nos levaria à tão sonhada Libertadores.

Nos meus aniversários, 24 dias antes dos do Palmeiras, era fácil saber o que eu gostaria de ganhar, ano sim e ano também: camisas do Verdão.

Quando acabou o período de glórias dos anos 90, com escalações lendárias que ainda povoam meus melhores sonhos, e o time caiu de divisão, confesso, fraquejei. Não consegui suportar uma dor tão forte de algo que me dava tanta felicidade. Acinzentei um pouco a minha vida. Deixe-me envelhecer, esqueci a alegria boba de um gol, de uma paixão infantil e "sem sentido". Futebol é só um jogo, não é mesmo?

Prestei vestibular para jornalismo. Será que, se eu não tivesse lido tantas notícias e reportagens sobre o Palmeiras, eu teria feito essa escolha?

Em 2005, após três anos de uma resistência meio covarde e meio adulta, eu me rendi. Já sabia a escalação de cor, salteado, de trás pra frente, com reservas, com time B, revelações da base e o que mais tinha direito. O verde pulsava de novo dentro das veias. Chorei ao subir, depois de oito anos, as arquibancadas do Palestra novamente e enxergar o jardim suspenso. Toda vez que eu entrava ali, até o fechamento para reforma, em 2010 (quando vi um gol de falta de Evair), o coração batia mais forte.

Terminei com uma namorada que havia me dado, poucos dias antes, uma camisa do Palmeiras. Não consegui devolver o presente - era a 7 do Edmundo, como eu iria devolver? Em outro relacionamento, dei uma camisa 9 de 92 à companheira, para que ela se lembrasse de mim. "É a 9 do Evair".

Vibrei muito, pulei muito, gritei muito, tirei muito sarro, dei infinitas cambalhotas.

Chorei muito, esperneei muito, sofri muito e dei diversos socos na parede.

Fiz minha prima, filha de corintiano, virar palmeirense. Fiz um amigo de infância, que não tinha time, tornar-se um apaixonado até hoje. Fiz minha mãe, santista, ser conhecida na escola em que ela trabalha como "a palmeirense". Já pisei em camisa do Corinthians, já ganhei e perdi apostas para envergar mantos rivais, já fiz muita mandinga inútil, já liguei pro meu pai chorando depois de um gol, já enchi a cara depois de título, já quis tirar 3x4 com a camisa verde, já gastei horas e horas vendo e ouvindo jogos do Palmeiras e mais outras discutindo escalações e ainda  mais tantas jogando com o time verde no vídeo game.

Se hoje eu choro quando vejo o gol de pênalti do Evair no 12 de junho de 1993 é porque até hoje lembro que esse foi um dos melhores dias da minha vida. Assisti com meu pai, no bar do Cezinha, rezando no banheiro para que o Palmeiras ganhasse.

Se falta assunto com meu pai, o que nos une é o Palmeiras. Se ligo pra minha vó, ela já comenta do cabelo da Gareca e do desgraçado do Valdivia. Minha mãe pensa em mim quando o Palmeiras ganha, tenho certeza. Minha irmã, ah, um dia ela vai comigo na Arena. Meus amigos mandam mensagens instantâneas no Whatsapp a cada gol (sofrido ou convertido).

"Palmeiras minha vida é você" é um grito que foi muito entoado no velho Palestra, é comum no Pacaembu e preencherá os ouvidos dos frequentadores da Arena.

Por tudo isso, por estar presente em todos os dias dos meus 29 anos de vida, e por ter certeza que será assim até a minha morte, pouco importando se exaltarei Da Guias e Edmundos ou sofrerei com Rovilsons e Gioinos, se irei incentivar ou cornetar... por tudo isso e por saber que as vidas de mais de 16 milhões de pessoas (uma imensa maioria de trabalhadores que se ferra muito nesse mundo) são, nesse sentido, parecidas com a minha, eu digo: Palmeiras, minha vida é você!

Parabéns pelos 100 anos, Sociedade Esportiva Palmeiras!

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

São Paulo (e Brasil) no Pós-Copa

Aí vai a segunda tirinha/charge do blog. Foi inspirada numa frase dita por Fernando Pardal.

A ideia foi juntar a crítica aos absurdos gastos com a Copa, principalmente por parte do governo federal, ao mesmo tempo em que questiona o "padrão Cantareira" do governo paulista: 0% de aumento na represa e no salário dos trabalhadores da educação (em especial os grevistas da USP, que foram reprimidos nesta semana).

Clique na figura para ver em tamanho maior:

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Arqueologia industrial e os limites ao avanço da técnica


No fim de maio, devido a um trabalho que precisei fazer para a disciplina de História da Ciência, fui ao Museu de Arqueologia Industrial e Tecnologia (Maitec), localizado em Mairiporã, a alguns poucos quilômetros de São Paulo. Não, eu também não sabia o que era arqueologia industrial.

Como deve acontecer com quase todo mundo, eu associava arqueologia simplesmente a escavações (rolava até uma confusão com paleontologia - que lida com fósseis). Mas esse ramo científico vai muito além, pois se trata do estudo de culturas e modos de vida antigos por meio de objetos materiais. Ou seja, vários vieses são possíveis, desde análises de resquícios de civilizações "intocadas", até a visão mais abrangente sobre a sociedade capitalista ocidental - justamente o que a arqueologia industrial e o Maitec possibilitam, pois há, no local, centenas de "fósseis tecnológicos" que foram bem importantes para o desenvolvimento do homem que habita as bandas do oeste.

Quando você entra no galpão principal do museu (após passar por áreas externas lotadas de pavões {!}) e em sua parte anexa, é possível observar carros antigos, vagões de trens de passeio, locomotivas, aviões, teares, ferramentas de metalurgia, motores, jangadas, prensas, arados, tipografias, betoneiras, tratores, projetores, telefones, computadores, caixas registradoras, carros de boi, discos rígidos, orelhões, máquinas de escrever, mimeógrafos, máquinas fotográficas, gramofones, caixas de correio e por aí vai - muitas coisa ainda em condições de uso. Há cartazes que explicam como a peça funciona e qual foi a importância dela no contexto de sua criação. Também é possível fazer perguntas aos funcionários do local.

Digressão: antes de se estabelecer como sedentário, o ser humano precisou de ferramentas e técnicas para transformar a natureza em bens materiais que satisfizessem suas necessidades. E o domínio dessas técnicas foi alterando não apenas os tipos e a velocidade de criação de objetos, mas as relações entre os indivíduos que compõem a sociedade. Ainda mais porque, de acordo com a visão marxista, as relações sociais e produtivas ocorrem a partir do trabalho, em qualquer sociedade humana.

No Maitec, o foco são os instrumentos que alteraram as relações da sociedade em que vivemos. Além de ser muito legal ver como eram engenhosos alguns itens antigos (que deram certo ou errado) e como eles foram fundamentais para que novas tecnologias se desenvolvessem, toda essa velharia faz pensar.

Imagine quantas vidas a locomotiva alterou por permitir o transporte de cargas e passageiros em velocidade impensável anos antes de sua criação. Quantas pessoas migraram para a zona urbana a partir disso, adquiriram empregos (muitas vezes em condições sub-humanas) e estabeleceram suas relações sociais a partir de uma nova realidade criada a partir dessa técnica? Quantos clubes de futebol com o nome de Ferroviário surgiram mundo afora devido às bitolas metálicas instaladas sobre o solo então inexplorado? Quantos patrões encheram os bolsos a partir da mais-valia alheia com ganho na velocidade de escoamento de mercadoria e barateamento do transporte dos empregados? Quantos produtos úteis e inúteis chegaram a cafundós devido à linha férrea?

Como dá para perceber com as perguntas enviesadas que fiz no exemplo da locomotiva, não se tratou apenas de um desenvolvimento vertiginoso, maravilhoso e sem contradições. Muitos dos itens citados no começo do texto foram importantíssimos para alterar as relações na sociedade do trabalho, mas há limitações. No sistema em que vivemos, mesmo havendo avanço em tecnologia, ela costuma se expandir apenas quando serve aos interesses de quem está no comando - de modo que essa turma possa faturar ainda mais em cima da nova criação.

Em nossas timelines do Facebook, estamos cansados de ver notícias sobre invenções fantásticas que transformariam CO2 em concreto, que substituiriam gasolina por energia elétrica nos carros, que fariam carne de laboratório para não precisar matar animais. E tudo isso, apesar de já ser tecnicamente possível, não vai para frente por questões econômicas. Ou melhor, porque não dá lucro - pelo menos não agora. Numa sociedade em que a ciência e a tecnologia tivessem como foco não a reprodução de capital, mas a ampla satisfação das necessidades humanas, imagino que a coisa seria bem diferente.

E, para terminar, você vai entender o desenho do início do post. O prédio em que trabalho tem uma placa que cita o ano de sua inauguração: 1997. Os empreendedores queriam dar um nome moderno e que passasse a ideia de inovação. Recorreram à língua inglesa e escolheram "New World of Business" (Novo Mundo dos Negócios). Como símbolo, optaram pelo ícone da novidade tecnológica da época: um CD-Rom.
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Metalinguagem: tem uma história legal sobre essa visita que vou contar num próximo post.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Tirinha hipnótica nº 1

Depois que comecei a fazer as ilustrações para os posts aqui do MZ, fui me interessando cada vez mais pelo negócio. Vi que eu poderia ir além do recurso "mídia artística" do Corel e voltei a dar umas rabiscadas após logos anos de recesso. O resultado é minha primeira tirinha em 14 anos. Ela é bem simples e tem a função de avisar aos mínguos leitores deste blog que, caso o botão "obter notificações" do Facebook (que aparece após o usuário clicar em "curtir") não seja ativado, quem curtir a página do Mercy Zidane dificilmente irá saber de qualquer atualização. Isso porque há uma nova política da rede social, que restringe o aparecimento de postagens oriundas de fan pagens na linha do tempo do usuário.

Entendeu? Hora de ser hipnotizado (clique na figura para ver em boa resolução):


Para obedecer ao Galo Psicodélico, basta acessar www.facebook.com/mercyzidane, clicar em "curtir" e, no mesmo botão, clicar em "obter notificações" ou "adicionar às listas de interesse".

terça-feira, 5 de agosto de 2014

O careca da sapataria


Todo dia, o homem de meia idade, alto, com uma careca opaca (ralos cabelos grisalhos ainda crescem pelas laterais), óculos de armação antiga e um queixo pontiagudo deixa a sapataria, na rua Ana Cintra, e sai para fumar, em pequenas pausas ao longo do expediente.

Das oito às cinco, juntando todas as alentadoras folguinhas, a fumaça de pouco menos de um maço passa por seus pulmões. Às vezes, ele olha o movimento e cumprimenta os conhecidos com acenos distantes. Noutras, mira seus próprios pés e bate a ponta do cigarro com o polegar por repetidas vezes, entre um trago e outro. E, como um fumante solitário qualquer, pensa.

Mas nessa época do ano, em um dos primeiros dias do mês, por volta das dez da manhã, o sol encontra a única cerejeira do restaurante que fica em frente à sapataria, do outro lado da rua. A árvore, diferentemente do que ocorre nos outros meses, está quase sem folhas e carregada de sakuras, as pequenas flores rosadas.

Quando o homem resolve sair para fumar e o olhar se desprende um pouquinho para o alto, há a surpresa. Todos os anos ele tem a mesma surpresa de quem lembra o sabor de um prazer há muito esquecido.

Acende o cigarro, apoia uma das pernas na mureta de proteção (de outra árvore, que fica na calçada em que a sapataria está), encaixa o queixo sobre a mão fechada enquanto a outra ponta do braço repousa sobre o joelho. Olhar fixo em direção às flores e o cigarro queimando entre o indicador e o dedo do meio da mão fechada - a outra se esconde no bolso. Quem anda pela calçada nesse momento ouve o longo suspiro, após uma leve tragada. O que a vida poderia ter sido?

Quando criança, como todas as que têm oportunidade, sonhava muito (de olhos abertos e fechados). Gostava de desenhar e pintar e não tinha dúvidas de que seria ilustrador, caso não fosse jogador de futebol. Sempre que podia, pegava o lápis e um pedacinho de qualquer tipo de papel e começava a rabiscar, mas preferia os primeiros minutos do dia. Era o horário em que os sonhos estavam mais frescos e se baseava muito neles para criar cenários e personagens de seus desenhos, complementados com a imaginação. Muitas pessoas, é verdade, não entendiam o que descobriu posteriormente ser seu "estilo". Diziam que os desenhos eram estranhos.

Num dia, mais velho a ponto de poder sair sozinho de casa, foi ao parque, não se lembra o motivo. O clima era frio e ventava muito. Enquanto caminhava, uma sakura chegou a seus pés. Viu mais algumas adiante. Seguiu a trilha e observou, pela primeira vez e com os olhos arregalados, uma cerejeira florida.

"Existe!", foi a primeira coisa que pensou. Caçoaram tanto dele na escola por desenhar uma árvore só com flores e sem nenhuma folha, que tinha visto em seu sonho. Ficou radiante! Tirou o lápis e o caderninho do bolso e começou a gastar o grafite. Tentou construir a delicada planta da forma mais realista possível, fugindo de sua característica principal.

Terminou vinte minutos depois. Viu que de realista o desenho não tinha nada, mas talvez tenha sido essa tentativa fracassada que fez o garoto perceber com mais nitidez a graça de sua prematura arte. Gostou do resultado.

Não mostrou aos familiares e colegas de escola, que costumavam fazer pouco caso de suas pequenas obras. Aguardou ansioso a quarta-feira seguinte, assistiu a toda a aula de artes e, quando a professora Bete estava sozinha na sala, apagando a lousa, aproximou-se e mostrou sua cerejeira. Perguntou se Bete sabia o que era. Ela respondeu com uma sequência de palavras que jamais saíram de sua mente:

-Que linda cerejeira, Fábio! A diferença é que a sua é muito mais bonita do que as que existem de verdade.

O calor do cigarro queimando os dedos fez o homem voltar do transe. Pisou na bituca e chutou-a para o meio-fio. Precisava consertar o salto quebrado da dona Cleide.

Voltava com pesar para o seu ofício, mas parou. Virou-se e mirou as sakuras por dez segundos. Pensou que ainda dava tempo, que existiam artistas que despontavam quando eram mais velhos. Já havia passado noites se perguntando quantos milhares de pessoas não deixaram de desenvolver suas expressões artísticas porque, assim como ele, tinham que trabalhar para sobreviver.

Desta vez ia ser diferente. Não seria como no ano passado e no anterior, ou no que veio antes desses. Ah, não! Desta vez, quando levantasse na manhã seguinte, ia desenhar seu sonho, como nos velhos tempos. E esse novo desenho seria uma guinada na sua vida, traria mais cor a tudo. Quem sabe até poderia descolar um troco? Ia procurar contatos, mostrar sua arte para o povo, vender quadros na feira de domingo, mas não ia deixar a rotina vencê-lo. Não mais.

Quando pegou o salto da dona Cleide para terminar logo o serviço, um calafrio lhe percorreu a espinha e se lembrou, desse vez de outra coisa.

Fazia muitos anos que não conseguia mais sonhar.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Quais os limites do Bom Senso FC?

Após derrota na Copa, há uma crise no futebol brasileiro. Qual seria a saída por fora do “futebol negócio”?


A Copa do Mundo chegou ao Brasil com estádios superfaturados, empreiteiros enchendo os bolsos, remoções de famílias, greves, manifestações e muita repressão. Enquanto isso, dentro de campo, a seleção pentacampeã passou vexame com a histórica goleada sofrida ante a Alemanha, na semifinal do torneio: um sonoro e inédito 7x1 – a maior derrota do Brasil em 20 edições da Copa do Mundo.

O otimismo acabou em crise futebolística.Não apenas a comissão técnica e os jogadores da seleção foram questionados, mas também os rumos do futebol brasileiro como um todo. Há uma série de pontos falhos, como a pouca atenção dada às categorias de base de clubes e da seleção, a venda prematura de jovens talentos ao exterior, a defasagem dos técnicos, a péssima organização dos campeonatos nacionais, etc.

Enquanto a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que deveria lidar com muitas dessas questões, só tem olhos para os amistosos internacionais e patrocínios milionários da seleção (só em 2014 serão R$ 300 milhões arrecadados), um grupo de jogadores se reuniu desde 2013 para confrontar decisões arbitrárias da entidade (que tem forte parceria com a Rede Globo), sob o nome de Bom Senso Futebol Clube. Essa reunião de atletas foi mais um reflexo do novo momento que o país atravessa em termos de politização.

Os jogadores organizados defenderam medidas básicas, como redução do número de jogos, teto salarial, calendário unificado, partidas espalhadas ao longo do ano para divisões inferiores, melhores horários para as disputas (que não fossem submetidas ao que é exigido por emissoras) e outras.

Com alguns protestos simbólicos, o grupo ganhou notoriedade. A derrota brasileira no campo fez a presidente Dilma Roussef (PT) decidir mostrar serviço para tentar se desvincular da imagem do fracasso canarinho em época eleitoral. Após seu ministro do esporte dizer que o futebol nacional teria uma “intervenção leve”, a mandatária convocou atletas do Bom Senso para uma conversa no Palácio do Planalto, em Brasília, no fim de julho.

Liderados pelo ex-corintiano Paulo André, que atualmente joga na China, os jogadores defenderam a não aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE), que isenta os dirigentes de clubes das consequências civil e penal caso cometam crimes; e sugeriram a democratização da CBF, com mandatos de dirigentes limitados a quatro anos, dando direito de voz e voto a atletas, treinadores, árbitros e clubes pequenos filiados à entidade. Também propuseram uma confederação “menos política e mais técnica”, com investimento em capacitação de treinadores, profissionalização do futebol feminino e de areia, abertura para debate e implementação de um novo calendário, entre outras medidas.

No entanto, quando o assunto foi a possível estatização da CBF (que é uma entidade privada, apesar de gerir um bem público), os jogadores do Bom Senso, como citado em artigo de Paulo André na Folha de S. Paulo, no dia 18 de julho, disseram: “Sabíamos que estatizar o futebol não era, nem de perto, a solução para os nossos problemas”. Certamente que uma estatização do esporte sem participação dos atletas, árbitros e comissões técnicas nas tomadas de decisão pouco adiantaria. Mas existe realmente a possibilidade de democratizar, pelos métodos propostos pelos jogadores, uma entidade tão corrupta quanto a CBF?

Dificilmente a estrutura de poder seria alterada sem uma mobilização massiva, pois o poder de decisão sobre um campeonato vale muito dinheiro para que CBF, Globo e cartolas de clubes o dividam com um jogador semi-amador.

Mas o ideal não seria que todos os jogadores profissionais, do goleiro de um time da Série D a um centroavante do clube campeão da Série A, ganhassem o mesmo salário? E se pudessem ter exatamente os mesmos poderes decisórios, como possibilidade de debater e votar um calendário de jogos para o ano todo?

Num terreno como o do futebol brasileiro, que parece estar estacionado na ditadura militar (o atual presidente da CBF, José Maria Marin, foi deputado estadual pela Aliança Renovadora Nacional - Arena -, partido da situação na época dos “Anos de Chumbo”), o Bom Senso, apesar de parecer dar passos democráticos, não representa a totalidade dos jogadores, principalmente a parcela mais pobre deles (82% dos jogadores profissionais recebem cerca de dois salários mínimos). As únicas alternativas formuladas para os atletas menos badalados são a criação da série E e o aumento do número de jogos nas séries C e D.
Não há propostas de organização em sindicatos de atletas, em que a representação da categoria seria mais justa e todos poderiam opinar a respeito.

Não é por meio de uma reforma numa instituição privada, com interesses de empresas por todos os lados, que as grandes disparidades salariais e a falta de organização no futebol seriam superadas. A estatização foi rechaçada pelos atletas do Bom Senso, mas não faria mais sentido que jogadores, técnicos, profissionais da área e toda a população participassem de processos públicos de tomada e gerenciamento do esporte? Isso seria impossível com a gestão da “paixão nacional” pela CBF.

E mesmo que o futebol fosse estatizado pela base de forma democrática, em um processo que dependeria da mobilização de vários setores da sociedade, uma pergunta simples colocaria muita coisa em xeque: para que serve o esporte? Antes de ser a forma de sobrevivência de certos indivíduos, ele é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da educação do corpo e da saúde pública, além de servir para divertir.

Dessa forma, deveria ser uma prática garantida a toda a população - o que está longe de ocorrer hoje em dia (vide a falta de quadras e campos em periferias). Qualquer um, nas suas horas livres, deveria ter direito de se associar a grupos de prática esportiva e poder utilizar equipamentos públicos para isso. Numa sociedade sem desigualdades, em que todos tivessem mais horas de lazer e o Estado garantisse o acesso às práticas lúdicas, o esporte tenderia a deixar de ser o que é hoje (um negócio milionário que forma poucos superatletas com gordas contas bancárias, além de ter uma maioria que recebe uma miséria e uma infinidade que não consegue sequer praticá-lo), tornando-se simplesmente uma prática lúdica e não profissional, voltada para a educação física e para o divertimento.

É bem difícil refletir sobre como seria se o futebol não dependesse do lucro de emissoras, bancos e outras empresas para existir. Como os times se dividiriam se não houvesse diferença de renda entre agremiações? Por bairro? Por estilo de jogo?

Nos primeiros anos após a Revolução Russa de 1917, a prática esportiva no país começou a se massificar e surgiram, de forma natural, grandes atletas. Diferentemente do que ocorre hoje, quando algumas promessas são “pinçadas” e submetidas a exaustivas rotinas de treinos, que levam a diversas lesões. Até os dias atuais, países do Leste Europeu e Cuba colhem alguns frutos em competições internacionais, por incrível que pareça, devido ao amadorismo resultante da massificação esportiva.

A garantia estatal das condições para a livre prática esportiva, sob controle da população, pode ser uma resposta para os diversos problemas enfrentados pelo futebol brasileiro. É preciso pensar o que fazer para que o “futebol negócio” se transforme simplesmente em “futebol prazer” e “futebol educação".
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Metalinguagem: escrevi este texto para a edição 107 do jornal Palavra Operária, da Liga Estratégia Revolucionária. Contei com importantes contribuições de camaradas para chegar à versão final. Apesar de a ideia inicial ter sido apenas levantar alguns aspectos da "crise futebolística", o artigo me fez pesquisar e pensar num bocado de coisas.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A equilibrista de angústias

Não tinha medo da morte, ou apenas dela. Morrer, em muitas situações, poderia ser reconfortante. Um alívio; um momento em que a dor cessa e se transforma num "quase prazer". O que a angustiava era o longo caminho de sofrimento até a ruptura. Tinha medo de picos de dor que seriam tão fortes a ponto de transformarem a morte na escolha mais fácil.

Percebeu sua fobia quando lia sobre histórias de grupos que tiveram que renunciar à vida que levavam e foram obrigados a mergulhar numa nova realidade, sobrevivendo com pouca perspectiva de retomada ou de mudança.

Então imaginava o sentimento individual nesse contexto. Sentia a dor de um índio brasileiro do período de 1500 após a captura por portugueses, sendo obrigado a comungar, aprender uma nova língua, trabalhar para ter menos do que a natureza lhe dava antes e a pensar que a vida toda seria batalhar para criar um milagre, oposto pelo vértice à maldição da chegada européia.

Pensava em alguma negra insurreta de um quilombo nordestino do século XVII ou XVIII. Tirada de seu continente, revoltou-se após muitas chibatadas, mas se via cercada por tropas imperiais. Por mais que lutasse e conseguisse sobreviver, sabia que carregaria a dor da morte de irmãos e da saudade de uma existência que não tinha mais como voltar.

Suava frio e se perguntava o que faria em tais situações. Desconfiava, mas não sabia.

Olhava para si. Tinha que agradecer as oportunidades que tivera e que muitos sonhavam ter. Mas via, de um lado, as oito horas de trabalho, as obrigações e cobranças por toda parte, mesmo de quem a amava. Do outro, percebia que a infância perdera a cor gostosa que a memória costuma dar e que seus prazeres atuais eram vazios, mesquinhos e de difícil superação. A luz, lá no fim do túnel, um dia viria, mas conseguiria ela suportar uma existência sem sentido? Anos a fio de segundos insossos desfilando a sua frente pesavam e causavam desequilíbrio. Ela chorava.

Às vezes, para não cair, jogava coisas para cima enquanto andava sobre a corda bamba. Noutras, quando enxergava as cores, segurava-se com a força de seus braços e pernas à linha mestra. Mas esses momentos eram curtos e um dos lados ia ficando novamente mais pesado a ponto de fazer a respiração doer. O suor frio voltava. Respirava fundo, tentava secar as lágrimas e não pensar no que sabia que iria aparecer em sua mente.

Nessas horas, a dor a fazia correr mais livre. Enxergava o caminho, mas não era ele o que a estimulava. Apenas não se importaria com a queda.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Um pouco sobre esquerda, estética e conteúdo


Quem começa a militar em partidos e organizações de esquerda, costuma o fazer por uma mistura de convencimento racional e paixão pela vontade de mudar o mundo.

É uma relação dialética entre as duas coisas: não dá para se convencer sem sentir a gana de construir um futuro diferente na atuação diária e também não há modo de ter só a paixão e não pensar estrategicamente, aprendendo com as lições do passado e verificando quais dos diversos caminhos propostos por várias visões valem a pena.

O problema é que, infelizmente (apesar da conjuntura estar se alterando), ainda são poucos os comunistas neste mundo. Quando essas ideias escapam dos espaços mais tradicionais de atuação da esquerda, como certos sindicatos, centros acadêmicos, movimentos sociais, etc., há um grande ruído comunicacional, principalmente quando falamos de mídia (jornal, vídeo, internet).

Excluindo as correntes que se adaptam ao que a maioria pensa sem fazer as críticas necessárias, as demais chegam com um discurso que soa, de maneira geral, como um romantismo abnegado de quem dedica sua vida a uma causa nobre, como se bastasse gritar palavras de ordem com várias exclamações, citar exemplos desconexos e siglas ininteligíveis para fazer uma pessoa perceber os absurdos do sistema e ideias complexas que podem superá-lo.

Mas, infelizmente, um punhado de comunistas não faz revolução (desculpe o trocadalho, foi inevitável) - e se faz, ela já nasce degenerada, como no caso da Revolução Cubana, em que os trabalhadores não foram sujeito ativo do processo revolucionário e acabaram sendo governados até hoje por uma burocracia que se perpetuou no poder por ser a parte mais ativa na derrubada do antigo regime.

Ou seja, de qualquer jeito, é preciso convencer mais pessoas de que certas ideias que parecem absurdas e que questionam a raiz dos problemas do capitalismo, como estatização dos transportes sob controle de trabalhadores e usuários, autogestão de fábricas por parte de trabalhadores, etc., não são. E, para isso, o trabalho de base é importante, mas o uso aprimorado e criativo de ferramentas de comunicação também é, porque pode ser eficaz  tanto na relação diária nos locais de trabalho e estudo, quanto de forma mais superestrutural, difundindo conteúdo pela vastidão do mundo virtual.

É muito difícil puxar pela memória uma produção gráfica ou audiovisual da esquerda que seja criativa e abra portas para novas cabeças pensarem a partir dessas ideias. Geralmente os jornais são grandes bíblias, os vídeos têm sindicalistas falando por vários minutos, usando e abusando dos clichês que mais afastam do que aproximam. Pouca linguagem inovadora, poucas sacadas, muita repetição. E o pior é que as técnicas para fazer algo diferente já estão bem difundidas.

No Brasil, quem foge dessa linha é Rafucko, um militante independente que faz vídeos muito criativos e irônicos, com um conteúdo político muito forte. Outro ponto fora da curva é a websérie Marx ha vuelto (da qual falei aqui).

Bom, e eu disse tudo isso para mostrar que, dentro das minhas pequenas possibilidades, tento estimular um jeito diferente de fazer conteúdo dentro da esquerda, a partir da também pequena organização em que atuo (que ainda está longe de ser exemplo em termos comunicacionais). Como tenho mexido com audiovisual, tentei produzir formatos novos de vídeos em algumas oportunidades. Até agora, o que deu mais certo foi o da visita do papa ao Brasil. Mas, na última semana, fiz um vídeo que tenta criticar a repressão do período da Copa de um modo diferente: com a narração futebolística entra os times dos manifestantes e da repressão:


quinta-feira, 26 de junho de 2014

John Lennon cantaria: "Libertem Fabio, libertem Rafael"


Em 1969, nos Estados Unidos, um ativista foi detido por portar dois cigarros de maconha. Cerca de dois anos depois, em 1971, ele serviu como bode expiatório para a cada vez mais lucrativa "guerra às drogas", que ocorre até hoje por terra yankees: houve julgamento e ele pegou nada menos que dez anos de prisão.

O caso absurdo gerou uma grande campanha democrática para a libertação imediata do ativista, que atendia pelo nome de John Sinclair. John Lennon, que morava nos Estados Unidos à época, compôs uma canção com o nome do rapaz para fortalecer a mobilização.

A música, que ajudou a libertar o ativista alguns dias depois, tem versos como (em tradução livre):

-"Não é justo, John Sinclair / Preso por respirar ar";
-"Se ele fosse da CIA / Vendendo drogas para ganhar dinheiro / Ele estaria livre / Iriam deixá-lo viver / Respirando ar como eu e você";
-"Ele foi preso pelo que fez / Ou representando todos?"

Apesar do contexto bem diferente (países, momento histórico, motivação, etc.), há pontos em comum entre o caso descrito e o que aconteceu com as prisões arbitrárias de Fabio Hideki Harano e de Rafael Marques Lusvarghi, no último protesto contra a Copa do Mundo, aqui no Brasil, no dia 23 de junho. Quando fiquei sabendo da história, foi a canção de Lennon que veio à minha cabeça, até porque a prática repressiva e as táticas de criminalização da polícia dos poderosos têm se modificado muito pouco ao longo das últimas décadas em todo o mundo.

Para que não haja brecha para confusão, o flagrante inventado pela polícia nada tem a ver com drogas (que deveriam ser legalizadas, em minha opinião), mas com o direito de manifestação. Ambos estavam num ato realizado na Avenida Paulista quando foram revistados arbitrariamente e presos por associação criminosa, porte de explosivos, desacato. O secretário de segurança do estado diz que eles são líderes dos Black Blocs (que sequer têm líderes) em uma clara referência de que são os bodes expiatórios para o recrudescimento da ação policial após o ato do dia 19, organizado pelo MPL, em que houve depredações. Várias testemunhas, como o Padre Julio Lancellotti, alegam que as provas foram plantadas - também há filmagens que enfocaram a "geral" tomada por Harano e que comprovam isso.

Querem dar até oito anos de prisão a Fabio simplesmente porque usou seu direito e resolveu se manifestar, como já fez várias vezes e como acredita que pessoas não egoístas devem fazer. Querem botar Rafael no pau de arara público para mostrar o que acontece com quem vai às ruas, defendendo o interesse de muitos.

Por tudo isso, acredito que, se Lennon estivesse vivo, ele seria contra prisões arbitrárias com penas esdrúxulas de pessoas que apenas respiraram ar se manifestando e estão sujeitas a serem bodes expiatórios nacionais. Ele cantaria: "Libertem Fabio! Libertem Rafael!"

terça-feira, 24 de junho de 2014

Transcrição de um sonho

Certa vez li um livro do Kafka chamado "Sonhos". Nada mais é do que uma coletânea de sonhos que o autor transcrevia logo ao acordar, em diversos períodos da vida. Há uma frase dele próprio na contracapa do livro: "escrever uma autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar sonhos".

Os sonhos embaralham as nossas percepções do real e nos colocam em um filme abstrato em que nos é dado o papel principal. Eles brincam com sentimentos tão profundos de formas tão simbólicas que, às vezes, podem ser, na hora em que são escritos, a "literatura das nossas vidas". E o mais fantástico disso é que sequer lembramos desse "acordar pra dentro" por mais de algumas poucas horas.

Dia desses encontrei um sonho que anotei em julho de 2012. Aí vai:

"Foi um sonho e ao mesmo tempo um pesadelo. Estranho não seria um bom adjetivo para classificá-lo, já que um sonho “normal” é que está fora dos padrões do que é normal na vida. Estávamos eu e minha companheira andando na rua, à noite, junto com um amigo. Foi então que encontramos outro amigo em comum e os cumprimentos normais se sucederam. Mas a “pilhéria" (brincadeira que parece uma briga) entre os dois amigos em comum confundiu as demais pessoas que passavam pela ruela, que pensavam se tratar realmente de uma briga. Na verdade, foi o pretexto que esperavam.

Tiros para o alto. Num piscar de olhos (ou num passe de mágica, se preferir), estávamos numa balada (boate, danceteria, etc.), mas todos eram reféns do grupo que iria se apresentar. O tempo todo apontavam armas para nós, humilhando-nos. Estávamos sempre no chão, com as mãos na cabeça, mas era como se deslizássemos pelo solo para que mais de uma pessoa tivesse a possibilidade de nos ameaçar.

Num corredor, uma mulher muito bonita estava sentada. Umas sandálias femininas desamarradas estavam no chão, mas não era possível saber de quem eram. Ela me pediu a bolsa de minha amiga (que sei lá como também estava lá) e eu dei. Ela retirou os cartões bancários e perguntou onde estavam os meus. Fiz o movimento de tirá-los da carteira, mas amassei o que uso mais para inutilizá-lo e dei os dois que tinha para a mulher. Ela, obviamente, percebeu e, num gesto de desprezo, devolveu-me ambos.

Na próxima cena, é como se eu tivesse dormido por um tempo. Ao acordar (ainda dentro do sonho), os músicos guardavam os instrumentos e eu comecei a conversar com eles, que retribuíam, mas com chacotas. Perguntei de onde eles eram. Um disse que era são-paulino. Eu falei que era palmeirense, então outro me mandou tomar no cu e todos riram, inclusive eu. Repeti a pergunta e me disseram que eram do Pari. Me despedi cordialmente, eles novamente retribuíram, mas com ironia.

Na saída, dei de cara com uma festa de rua, em que algumas amigas estavam na barraca frontal. Não sei o que estava à venda, mas quando fui cumprimentar uma delas, derrubei um copo d’água no fogão, apagando o fogo. Em seguida, saudei duas amigas da minha mãe e a minha tia, que estava fumando um cigarro de palha ou de maconha e bebendo. Apesar de radicalmente contra entorpecentes e álcool, minha tia não fez menção nenhuma de esconder de mim o cigarro ou a bebida. Aos trancos e barrancos e com a demora para reacender o fogo, ela foi entrando na barraca e dizendo algo como “eu vou arrumar essa porra”.

Foi então que acordei. No entanto, antes dessa passagem, que foi a mais marcante e que me fez despertar de mau humor, houve outra parte, não menos melancólica. Eu estava na casa da minha avó paterna e eu procurava por desenhos, se não me engano, para pintá-los. Encontrei alguns. O primeiro era muito simples e tinha alguns rabiscos, com a face de três pessoas (eu, minha vó e meu pai). O segundo enfocava a mesa da cozinha, com uma galinha ao centro. Era um desenho mais elaborado. O terceiro era um muito bonito, com a figura de uma galinha iluminada pela luz de uma vela. Os traços do sombreado eram nítidos, mas se confundiam com as penas e davam um efeito espetacular".

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Redes sociais, fragmentos e contrapontos


Um vez, faz um tempinho, eu escrevi sobre o Twitter, dizendo que ele é um reflexo de nosso tempo: uma ferramenta ágil e superficial - mas que, claro, possui pontos positivos. Tenho muitos amigos que usam e dizem que serve como um grande selecionador de artigos e notícias. E mesmo se não servisse para nada de "útil", todo mundo tem o direito de gastar seu tempo livre como bem quiser.

Mas e a grande rede social hegemônica que desbancou a soberania então inquestionável do Orkut no Brasil? O Facebook, se você for para para pensar, não é muito diferente disso. Tem uma linha do tempo com milhares de postagens de centenas de pessoas diferentes - e poucas delas, imagino eu, passam de 140 caracteres. Quando ultrapassam esse número, é bem provável que o alcance diminua. Há muitas fotos (a rede está cada vez mais dando prioridade às imagens), links (esses sim com artigos e matérias que podem ser mais desenvolvidos) e um espaço também crescente para vídeos. Resumindo, é um emaranhado de fragmentos de onde é possível pinçar coisas legais depois de gastar bastante tempo girando a rodinha do mouse.

E excluindo o fator essencial do Facebook  (o seu aspecto de rede), é possível traçar uma analogia dessa ferramenta com uma mais informativa e que está rareando: o jornal impresso. Ele tem como premissa básica "botar ordem" no caos do mundo e, para isso, fala um pouquinho sobre cada coisa. Esse pouquinho era bem maior até a década de 60, aqui no Brasil. O leitor se deparava com imensos blocos de texto logo nas capas e as matérias tinham tons opinativos mais fortes. O padrão do jornalismo estadunidense "objetivo" e "imparcial" do pós-guerra (com muitas aspas porque não existe objetividade e imparcialidade no jornalismo) passou a imperar a partir de então e as portas foram se abrindo cada vez mais para fotos, ilustrações e design em geral. E os textos foram ficando menores.

Fomos seduzidos pelas imagens e pelas lindas curvas do design. Por quê? Porque elas são informativas também e já nos dão boa ou má impressão de algum conteúdo mesmo que não tenha havido contato nenhum com ele. Elas são como um cartão de visitas sobre o que será discutido. Às vezes precisamos fingir que a diagramação não está tão ruim e ter força de vontade para ler um texto de alguém que você sabe que tem bom conteúdo, mas que subvaloriza a informação "imagética".

Por que o cérebro do ocidental (será que é só do ocidental?) funciona assim? Acho que tem a ver com a vida na sociedade moderna, com a correria das grandes cidades, com a falta de incentivo à reflexão de uma sociedade cujo objetivo principal de quem tá lá no alto é só reproduzir o que já existe e embolsar mais lucro, mas também penso que se a sociedade fosse diferente e mais reflexiva, com maior participação de todos sobre as decisões fundamentais, certamente haveria discussão e muito estudo sobre o poder das imagens e do design. Não dá para fazer a oposição simples conteúdo (profundo) x forma (superficial), já que há complementariedade na relação e existem formas profundas e conteúdos superficiais.

E se o grande problema das redes sociais é a captura de informações pessoais e a falta de privacidade, por outro lado, elas possibilitam, a partir do domínio de algumas técnicas, criar contrapontos de debate e de concepções da realidade que não estão no mainstream, vide a organização dos protestos brasileiros de junho de 2013, canais de música independente e até políticos, como o do humorista carioca Rafucko.

Pois bem, por tudo isso e porque tô tentando levar meu blog mais a sério, lanço hoje a página do Mercy Zidane no Facebook. Lá, vou tentar contribuir pra esse contraponto com as caraminholas que penso por aqui e também com outros conteúdos de blogs amigos que eu ache legal .Copio o Chespirito em sua primeira postagem no Twitter (ele tinha 82 e eu tenho 28): sigam-me os bons!

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Não me chame pro churrasco

Se você, caro leitor, for "futucar" no histórico deste blog, vai perceber que o primeiro post, escrito por J. Silva, foi elaborado após a final da Copa do Mundo de 2006, no mês de julho. O nome deste blog provavelmente seria outro se Zidane não acertasse a épica e suicida cabeçada em Materazzi, mas dificilmente deixaria de expressar alguma pitada de futebol.

Oito anos depois, o blog, com seus poucos altos e muitos baixos, sobreviveu e minha paixão pelo futebol (comprove com este texto aqui) e pelo torneio que reúne os melhores jogadores do planeta não mudou, mas impossível passar por cima de tudo o que aconteceu em terras tupiniquins desde que o país foi eleito como sede e simplesmente vibrar despreocupadamente com drible de Neymar ou com um gol de Fred.

Como bem disse o jornalista Juca Kfouri no último Roda Viva, a Copa foi pensada como a coroação de um país que estava "em desenvolvimento" vertiginoso, que tirava pobres da miséria (dizendo que colocava na classe média mesmo que tivessem renda mensal de R$ 300), que possuía uma das economias mais fortes do mundo (e um dos maiores índices de desigualdade social), que aparecia na capa da The Economist como o país que decolava, etc. Seria a cereja do bolo da conciliação de classes do governo Lula - enriquecendo empreiteiras e pedindo a aprovação para os gringos ao tentar mostrar que capitalismo brasileiro funciona a ponto de sediar um megaevento internacional sem problemas.

Em 1958, o técnico da seleção na Copa, Vicente Feola, disse que Garrincha entraria jogando na partida contra a URSS e deu diversas orientações ao rapaz. Depois de ouvir tudo, o jogador perguntou: Mas você combinou isso com os russos? Foi o que faltou aos governos Lula e Dilma: eles combinaram com a FIFA, com as empreiteiras, com grandes empresas, com a imprensa, mas esqueceram de avisar pro sistema que ele não poderia expressar suas contradições. Veio a crise de 2008 (cujos impactos são sentidos até hoje) e com ela uma mudança qualitativa na conjuntura internacional - hoje em dia, é comum ver pessoas nas ruas protestando em diversos países a ponto de governos caírem. No Brasil, existe um número crescente de greves há anos (2012 bateu um recorde de 16 anos e 2013 e 2014 devem seguir nessa linha) e o aumento das passagens explodiu a insatisfação de quem viu um país desigual esquecer de suas prioridades para gastar com estádios-elefantes-brancos (o Brasil fez questão de eleger 12 sedes, sendo que só oito seriam necessárias), dar dinheiro pra uma das instituições mais corruptas do mundo, enquanto mais de 150 mil pessoas foram desalojadas de suas casas e a "nova classe média" - que na verdade é constituída por trabalhadores precarizados -, apesar de ter grana para comprar celular, não tem educação, saúde ou moradia de qualidade.

A "Copa das Covas", que bateu o recorde de gastos e de operários mortos em obras de estádios (9), pelo menos num primeiro momento, não empolga como de costume o torcedor brasileiro. Apenas ontem comecei a sentir o "clima de Copa", com muita gente de verde e amarelo e bandeiras do Brasil colocadas nos carros, coisa que, nos mundiais passados, começava com semanas ou meses de antecedência. Há poucas ruas pintadas e a decoração costuma se dar em lojas - é inegável que há no ar uma sensação de que está estranho torcer depois de tudo o que aconteceu. Até quem não liga para tudo isso e está animadíssimo com o torneio precisa contrapor o bordão dos protestos e afirmar que "vai ter Copa sim".

E se Dilma sambou tanto para tentar encontrar e colocar em sua propaganda os legados do torneio, eu acho simples apontar qual foi o único importante: os trabalhadores e jovens terem voltado a acreditar nas próprias forças. Junho de 2013 mudou o país com milhões nas ruas exigindo demandas de esquerda e conquistando a vitória parcial da manutenção das tarifas. E se em 2014, até agora, os protestos não foram massivos como os do ano passado, uma diferença qualitativa ocorre, pois os trabalhadores estão participando ativamente com suas greves que tentam passar por cima de sindicatos burocratizados (como aconteceu com os garis do Rio de Janeiro e rodoviários de Porto Alegre e São Paulo) e lutar por melhorias para toda a população, vide a greve dos metroviários de São Paulo.

E, como disse meu camarada Thiago, ao final dessa histórica greve dos metroviários: se ganhamos, mostramos que temos força (como aconteceu em 2013) e se perdemos, mostramos que, quando levantamos a cabeça, pelo menos dá jogo.

Por tudo isso, peço que não me chame pro churrasco. Não digo que não vou assistir a um ou outro jogo pela televisão, mas certamente a prioridade nesta Copa é engrossar o coro dos insatisfeitos nas ruas.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Precisamos de um cinema panfletário


Numa das aulas do curso de Ciências Sociais que faço, certa vez, um professor proferiu o seguinte comentário quando falava sobre uma das mais famosas obras de Marx e Engels, o Manifesto Comunista:

-É um panfletão!

O contexto da afirmação, se não me engano, tinha a ver com as diferentes fases das elaborações de Marx. O tom pejorativo do comentário quis inferiorizar a atuação militante e valorizar as teorizações mais "acadêmicas" (se é que podemos chamar com esse nome) do barbudo comunista. Fiz a ressalva entre parênteses porque Marx nunca quis ganhar uma cadeira em universidade para estabelecer sua teoria. Ele queria entender e mudar o mundo, e enxergava a relação fundamental entre teoria e prática, pois propôs uma filosofia que partisse da "terra", fosse ao "céu" e retornasse ao campo material para ser provada na realidade, em suas Teses sobre Feuerbach da Ideologia Alemã. Em O Capital, não esmiuçou à toa os mecanismos mais invisíveis da reprodução da mercadora e da criação do lucro dos patrões. E, no próprio Manifesto, resume conteúdos de significados políticos imensos dirigindo-se a trabalhadores para chamá-los a se unirem contra o estado de coisas que se desenvolvia, pois só eles poderiam alterar as estruturas. Ou seja, não faz sentido separar o que, para o barbudão, era indivisível.

Mas vamos nos ater um pouco ao xingamento do professor de sociologia. Um "panfletário" não é simplesmente uma pessoa que distribui panfletos. Literalmente é, mas  acabou se tornando sinônimo de alguém que não apenas dá acesso a uma informação redigida por uma pessoa ou grupo num pedacinho de papel, mas que tenta convencer outro politicamente de uma ideologia. Como os políticos da ordem e os ricos em geral convencem seus pares com muitas maletas de dinheiro em reuniões em hotéis luxuosos e só sabem o que é panfleto em época de eleição, o termo acabou sendo associado mais aos esquerdistas, imagino eu, pelo fato de ser esse grupo de pessoas que tenta convencer os trabalhadores do próprio poder que têm nas mãos a partir do chamado "trabalho de base" - que consiste não apenas em panfletar para trabalhadores de diversas categorias profissionais, mas também em atuar em sindicatos e comitês de classe. E, ao contrário do que muitos direitosos dizem, ninguém pode compactuar um conteúdo de um panfleto se ele for empurrado goela abaixo. Para que haja aceitação de uma ideia, é preciso debate e discussão em torno dela.

Se pararmos para pensar, os últimos cerca de 30 anos não foram tão frutíferos para os panfletários esquerdistas (esses que realmente querem mudar o mundo). O ascenso do neoliberalismo, a flexibilização de direitos, a queda da União Soviética (que mesmo burocratizada por uma casta privilegiada ainda era um estado operário), entre outros fatores, fizeram com que surgisse a ideia de "fim da história", por meio de Francis Fukuyama. Nela, acreditava-se que o mundo capitalista estava rumando para o fim de suas contradições e que, aos poucos, tudo iria melhorar para todos. O auge dessas ideias data da década de 90 e o termo país "em desenvolvimento" vem dessa época. É bom lembrar que muitos ex-esquerdistas, apesar de discursarem sobre revolução nos dias de festa, capitularam totalmente à tentativa lentíssima e gradualíssima de melhorar as coisas dentro do sistema.

Finalmente o cinema

E é só agora, depois de cinco parágrafos, que vou meter o cinema na história. Nessa época, os filmes, como era de se esperar, continuaram a ser produzidos (em alguns poucos países) e distribuídos em todo mundo. De maneira bem genérica, é possível dizer que houve uma pressão da realidade para que eles se adequassem a esse tipo de ideologia dominante.

Excluindo as exceções e tentando formar uma panorama bem abrangente, no Brasil, após os filmes muitas vezes mais herméticos, mas cheios de conteúdo político do Cinema Novo dos anos 50 e 60, os 80 viveram de chanchadas e os 90 presenciaram o início do que ficou conhecida como Retomada, em que os filmes nacionais voltaram a ser produzidos para exibição em cinemas, geralmente com algum tipo de auxílio governamental.

Inegável que houve uma leva de filmes que expressou contradições do sistema - desde as diversas películas sobre ditadura a documentários que retratavam a miséria de populações excluídas, passando por produções alternativas que tinham a política mais como pano de fundo. Mas não me recordo de algum filme que tenha em seu escopo a proposição de mudanças de paradigma de organização social. Em outras palavras, todo mundo filmava as contradições, mas ninguém dizia o que fazer para superá-las.

Eis que, não mais que de repente, como é de costume no capitalismo, a sujeira começou a sair por debaixo do tapete no mundo e as tais contradições que, teoricamente, tendiam a decrescer foram aumentando do fim da década de 90 e início dos anos 2000, até que a crise de 2008 explodisse, com a bolha imobiliária.

Primavera Árabe, indignados na Espanha, estudantes chilenos, trabalhadores gregos e a própria luta contra o aumento da passagem no Brasil. Tudo isso aconteceu num intervalo menor que quatro anos e representa a reverberação da insatisfação dos trabalhadores e da população em geral com a falta de capacidade desse sistema desigual de conceder demandas democráticas básicas, como ensino público, transporte para todos, emprego, remuneração digna, moradia.

Revoltas e processos revolucionários já não são mais coisa de maluco e muita gente mundo afora tem percebido que greves e manifestações de rua questionando regimes podem conquistar vitórias (mesmo que parciais). A tendência é de crescimento de protestos.

Certo. Se a conjuntura política está efervescente no mundo todo e no Brasil (como há muito não se via), o que esperar do cinema nacional? Reflexos de tudo isso certamente irão aparecer mesmo na indústria cinematográfica (já há alguns documentários sobre as Jornadas de Junho), mas num momento em que as tecnologias para captação de imagens e de áudio e para edição já estão muito mais acessíveis e os métodos de divulgação de conteúdo são diversos e bem efetivos, eu acho que está na hora de emergir um cinema não apenas que mostre as subjetividades e os dramas pessoais que pululam das contradições do sistema, mas que proponha ideias que possam levar ao questionamento do capitalismo, propagandeando uma sociedade em que todos sejam trabalhadores e tenham as mesmas condições. Ou seja, precisamos de um cinema panfletário! Um cinema que defenda uma ideia e seja ponto de partida para muitos debates acerca de como uma nova sociedade pode ser criada. E se isso é ser panfletário, que tenhamos orgulho em sê-lo.

E o exemplo a ser seguido, em minha modesta opinião, é o da série Marx ha vuelto, produzida pelo Instituto del Pensamiento Socialista Karl Marx (IPS), pela TV do Partido de los Trabajadores Socialistas (TV PTS) e pelo Contraimagem. Ela trata, vejam vocês, justamente do maior panfleto de todos os tempos, do qual falamos no início do texto, e que segue convencendo pessoas a militarem pelo socialismo até hoje: O Manifesto Comunista.

Os capítulos da produção ficcional têm pouco mais de dez minutos e o intuito é mostrar a atualidade do pensamento de Marx, misturando, de forma bem dinâmica, o dia a dia de um trabalhador gráfico, animações que retratam crises e contradições do sistema, e trechos do Manifesto explicados por um Marx que voltou ao nosso tempo e conversa com demais trabalhadores, de forma informal, num bar, que poderia ser o da esquina da sua casa. E, como no panfleto de Marx, mostra que só os trabalhadores unidos podem superar o capitalismo.

Recomendo fortemente a todos e espero que sirva de inspiração para quem tem uma camerazinha bem marromenos na mão e ideias revolucionárias na cabeça.

Assista abaixo aos quatro episódios com legendas em português:


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Metalinguagem: esse tipo de cinema seria o que eu faria agora se me fosse dada liberdade e possibilidade, mas não significa que eu considere apenas filmes que têm a propaganda socialista como bons - isso seria absurdo - estou elaborando um post a respeito para tentar aprofundar minha concepção. Para saber mais sobre a conjuntura política dos últimos 30 anos, clique aqui.