Todo dia, o homem de meia idade, alto, com uma careca opaca (ralos cabelos grisalhos ainda crescem pelas laterais), óculos de armação antiga e um queixo pontiagudo deixa a sapataria, na rua Ana Cintra, e sai para fumar, em pequenas pausas ao longo do expediente.
Das oito às cinco, juntando todas as alentadoras folguinhas, a fumaça de pouco menos de um maço passa por seus pulmões. Às vezes, ele olha o movimento e cumprimenta os conhecidos com acenos distantes. Noutras, mira seus próprios pés e bate a ponta do cigarro com o polegar por repetidas vezes, entre um trago e outro. E, como um fumante solitário qualquer, pensa.
Mas nessa época do ano, em um dos primeiros dias do mês, por volta das dez da manhã, o sol encontra a única cerejeira do restaurante que fica em frente à sapataria, do outro lado da rua. A árvore, diferentemente do que ocorre nos outros meses, está quase sem folhas e carregada de sakuras, as pequenas flores rosadas.
Quando o homem resolve sair para fumar e o olhar se desprende um pouquinho para o alto, há a surpresa. Todos os anos ele tem a mesma surpresa de quem lembra o sabor de um prazer há muito esquecido.
Acende o cigarro, apoia uma das pernas na mureta de proteção (de outra árvore, que fica na calçada em que a sapataria está), encaixa o queixo sobre a mão fechada enquanto a outra ponta do braço repousa sobre o joelho. Olhar fixo em direção às flores e o cigarro queimando entre o indicador e o dedo do meio da mão fechada - a outra se esconde no bolso. Quem anda pela calçada nesse momento ouve o longo suspiro, após uma leve tragada. O que a vida poderia ter sido?
Quando criança, como todas as que têm oportunidade, sonhava muito (de olhos abertos e fechados). Gostava de desenhar e pintar e não tinha dúvidas de que seria ilustrador, caso não fosse jogador de futebol. Sempre que podia, pegava o lápis e um pedacinho de qualquer tipo de papel e começava a rabiscar, mas preferia os primeiros minutos do dia. Era o horário em que os sonhos estavam mais frescos e se baseava muito neles para criar cenários e personagens de seus desenhos, complementados com a imaginação. Muitas pessoas, é verdade, não entendiam o que descobriu posteriormente ser seu "estilo". Diziam que os desenhos eram estranhos.
Num dia, mais velho a ponto de poder sair sozinho de casa, foi ao parque, não se lembra o motivo. O clima era frio e ventava muito. Enquanto caminhava, uma sakura chegou a seus pés. Viu mais algumas adiante. Seguiu a trilha e observou, pela primeira vez e com os olhos arregalados, uma cerejeira florida.
"Existe!", foi a primeira coisa que pensou. Caçoaram tanto dele na escola por desenhar uma árvore só com flores e sem nenhuma folha, que tinha visto em seu sonho. Ficou radiante! Tirou o lápis e o caderninho do bolso e começou a gastar o grafite. Tentou construir a delicada planta da forma mais realista possível, fugindo de sua característica principal.
Terminou vinte minutos depois. Viu que de realista o desenho não tinha nada, mas talvez tenha sido essa tentativa fracassada que fez o garoto perceber com mais nitidez a graça de sua prematura arte. Gostou do resultado.
Não mostrou aos familiares e colegas de escola, que costumavam fazer pouco caso de suas pequenas obras. Aguardou ansioso a quarta-feira seguinte, assistiu a toda a aula de artes e, quando a professora Bete estava sozinha na sala, apagando a lousa, aproximou-se e mostrou sua cerejeira. Perguntou se Bete sabia o que era. Ela respondeu com uma sequência de palavras que jamais saíram de sua mente:
-Que linda cerejeira, Fábio! A diferença é que a sua é muito mais bonita do que as que existem de verdade.
O calor do cigarro queimando os dedos fez o homem voltar do transe. Pisou na bituca e chutou-a para o meio-fio. Precisava consertar o salto quebrado da dona Cleide.
Voltava com pesar para o seu ofício, mas parou. Virou-se e mirou as sakuras por dez segundos. Pensou que ainda dava tempo, que existiam artistas que despontavam quando eram mais velhos. Já havia passado noites se perguntando quantos milhares de pessoas não deixaram de desenvolver suas expressões artísticas porque, assim como ele, tinham que trabalhar para sobreviver.
Desta vez ia ser diferente. Não seria como no ano passado e no anterior, ou no que veio antes desses. Ah, não! Desta vez, quando levantasse na manhã seguinte, ia desenhar seu sonho, como nos velhos tempos. E esse novo desenho seria uma guinada na sua vida, traria mais cor a tudo. Quem sabe até poderia descolar um troco? Ia procurar contatos, mostrar sua arte para o povo, vender quadros na feira de domingo, mas não ia deixar a rotina vencê-lo. Não mais.
Quando pegou o salto da dona Cleide para terminar logo o serviço, um calafrio lhe percorreu a espinha e se lembrou, desse vez de outra coisa.
Fazia muitos anos que não conseguia mais sonhar.