Mercy Zidane: dezembro 2015

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Temos que falar mais sobre abuso sexual



Carol Almeida é uma grande amiga minha. A gente se conheceu em Bauru, cursando a faculdade de jornalismo. Há mais de dez anos conversamos quase que diariamente sobre variadíssimas coisas (de futebol a relacionamentos, de política a piadas, de trabalho a seriados). Eu comentei com ela sobre a ideia de postar textos de outras pessoas neste blog, complementando com desenhos meus, e ela, depois de alguns dias, escreveu esse relato extremamente corajoso e perguntou se eu gostaria de publicar. Para falar sobre um tema delicadíssimo como esse, que ocorre com tantas meninas diariamente no Brasil e no mundo, nada melhor que uma mulher. O que fiz foi tentar apenas introduzir o leitor ao texto com uma charge que condensa um pouco do argumento da autora (clique na imagem para ver em alta resolução) ~ Alberto Suzano.


Temos que falar mais sobre abuso sexual

Por Carol Almeida

Há algum tempo, diversos movimentos nas redes sociais têm me feito pensar bastante sobre ser mulher. Eu pensei muito antes de escrever e mais ainda antes de publicar esse texto, mas os relatos me fizeram conversar mais sobre o assunto. Descobri que falar abertamente sobre abusos sexuais, seja com o psicólogo, com amigos ou até com desconhecidos, faz uma diferença brutal na forma como eu enxergo e lido com o problema. E é por isso que decidi falar aqui sobre #meuprimeiroassédio e #meuamigosecreto, porque #chegadesilêncio.

O primeiro abuso que sofri foi de um primo, adolescente. Eu devia ter uns 6 ou 7 anos, ele me colocava no colo e me usava para se masturbar. Foram várias vezes, e em uma delas cheguei a sentir esperma na minha calcinha. Eu não entendia o que aquilo significava e não sabia o que estava acontecendo. Tinha uma vaga ideia de que era errado, já que era sempre escondido, mas era confuso, estranho. Não contei para ninguém e durante muito tempo eu não consegui explicar o porquê de não falar. Não conseguia explicitar se era vergonha, medo dos julgamentos ou simplesmente porque acreditava que não valia a pena ser falado. Simplesmente não contei.

Até que falei com uma prima, que também era abusada. E quando chegou aos ouvidos da família, o que eu ouvi foi: "se você não contou antes é porque você gostava". Essa é a única frase que me lembro da conversa. Eu posso ter ouvido uma explicação sobre o que era aquilo, posso ter sido alertada de que não estava certo, de que ele não deveria ter abusado... Mas eu só me lembro dessa frase: “se você não contou, é porque estava gostando”. E assim eu cresci, sempre com essa frase martelando na minha cabeça e mostrando que eu é que estava errada por ter “deixado” e “gostado”.

O abusador não teve uma frase martelando na cabeça dele. Eu tenho que vê-lo em todas as festas de família e responder pra todo mundo “porque é que eu tenho tanta implicância com ele”. A primeira vez que expliquei o real motivo foi para algumas primas e todas elas me disseram que isso é normal, que elas também sofreram abusos e que eu tinha que “deixar pra lá”, “não guardar mágoas”. E eu acreditei que eu tinha mesmo que esquecer. Se acontecia com todo mundo, por que só eu não superei? Por que é que elas conseguiam falar sobre (e fazer) sexo naturalmente e eu não? Alguma coisa estava errada comigo.

E foi assim que também “deixei pra lá” o segundo abuso, aos 12 anos, de um dentista. Ele passou as mãos nos meus seios enquanto eu estava imobilizada na cadeira do consultório dele. Não contei pra ninguém, porque o certo era deixar pra lá, esquecer e fingir que não aconteceu.

Acontece que esses abusos não me “deixaram pra lá”. Eu cresci aprendendo que sexo é errado. Que se eu não contei para ninguém é porque eu tinha gostado, e era errado eu gostar. Mas nunca aprendi que era errado o que eles fizeram, nunca aprendi que tinha sido uma vítima. O que era errado era eu não ter contado, eu ter deixado, eu ter gostado. Isso foi me acompanhando durante toda a vida, atrapalhando minha sexualidade, influenciando nos meus relacionamentos, me fazendo se sentir culpada por tudo. Eu só poderia fazer sexo com “um namorado”, alguém que me amasse e quisesse casar comigo, porque só assim eu estaria fazendo o certo, finalmente.

Depois de muito tempo carregando a culpa de ter “gostado” do abuso, o próprio abusador perguntou por que é que eu não gostava dele. E quando, reunindo muita coragem, eu disse que é porque ele abusava de mim, ele falou que “nunca faria isso”, que isso era “coisa da minha cabeça” e que ele achava que eu tinha ciúmes por ele “não ter ficado comigo” quando eu era adolescente.

E foi só aí, mais de uma década depois dos abusos, que eu vi que tem alguma coisa muito errada com o mundo, e não comigo. Enquanto eu me sentia culpada, com medo, com vergonha ou sei lá como definir o sentimento, o cara que abusou de mim não lembra, não tem nenhum peso na consciência e ainda acredita que eu tinha ficado “chateada” por ciúmes.

Eu aprendi a questionar e depois de algumas sessões de terapia e muitas conversas consegui entender que o que me calava era a culpa. Mesmo entendendo racionalmente que eu era uma criança e não tinha consciência do que acontecia, nós nos sentimos culpadas porque estão nos ensinando errado. Ao invés de ensinar a eles que eles não podem abusar, nos ensinam que não podemos estimular. Ao invés de ensinar a eles que eles nos devem respeito e nosso corpo é só nosso, nos ensinam a não sair de roupa curta, que não podemos gostar de sexo senão somos putas, que não podemos sair sozinhas à noite. No fim, eles não sabem o mal que fazem a nós, simplesmente porque nos calamos.

Quando eu li as hashtags #PrimeiroAssédio, #ChegadeSilêncio, #Primaveradasmulheres e #AgoraÉQueSãoElas eu descobri que não sou só eu. Que todas (ou quase todas) as mulheres do mundo passaram por situações parecidas, e a maioria por situações muito mais graves do que as que eu passei. É claro que cada mulher consegue lidar com isso de uma forma diferente. Algumas até esquecem, outras não entendem, muitas não pensam sobre isso. Mas todas elas se calam.

Verbalizar o que eu sinto me ajudou a entender muito mais o que foi o abuso e como isso influenciou minha vida até agora. As consequências não foram poucas e eu ainda sofro com elas diariamente. Cada atitude que tomo eu tento não ser influenciada por uma culpa que não é minha.  Estou aprendendo muito e a cada dia e a cada relato aprendo um pouco mais. Chorei quando a Jout Jout fez esse vídeo e falou todas as verdades que eu queria gritar para o mundo, me identifiquei com cada sentimento que a Flávia Tavares colocou no texto dela... Não é fácil escrever esse texto e é muito difícil publicá-lo, mas tenho certeza que isso não pode continuar acontecendo com outras pessoas.

Recentemente, falei sobre os abusos que sofri em algumas conversas. É uma experiência interessante ver a cara de susto dos homens e o olhar de entendimento das mulheres. A resposta padrão dos homens é “esses caras são bandidos e deveriam ser presos”, e o meu ponto é que se quase todas as mulheres que conheço sofreram abusos, muitos homens da minha convivência também abusaram. Faltariam cadeias para colocar todos os abusadores, e é um absurdo que as pessoas ainda não saibam disso.

É por isso que precisamos de mais relatos, mais textos, mais gritos. Todo o barulho que fizermos vai ser pouco para que os abusos não sejam encarados como algo “normal” pelas mulheres e para que as consequências deles sejam percebidas pelos homens. Hoje, eu me sinto inferior e desigual. Eu olho no espelho mil vezes e penso se é melhor sair de casa com um shorts curto ou evitar ouvir comentários sobre meu corpo na rua, mas o cara que abusou de mim não tem que fazer essa reflexão. Eu tenho medo de sair na rua sozinha de madrugada e fico pensando em mil formas de me livrar de um estupro caso aconteça, mas o dentista ainda sai normalmente, a hora que quiser, sem pensar nessa possibilidade.

Então, me junto ao coro da Jout Jout: VAMOS FAZER UM ESCÂNDALO. Vamos gritar, fazer um escarcéu e mostrar para todo mundo que assédios não são normais. De nenhum tipo. O corpo é nosso, a vida é nossa e nenhum homem tem o direito de invadir o nosso espaço e nos agredir. Homens, simplesmente parem de achar que assédio é “elogio”. Mães e pais, mostrem pras suas filhas que elas têm o poder sobre o corpo delas e não podem aceitar abusos, e ensinem aos seus filhos que eles não podem abusar. E mulheres, gritem mais.