Mercy Zidane: novembro 2014

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Não podem arrancar esse prazer de nós

Tem uma porção de gente no mundo. E apesar dos milhares de problemas do viver, que fazem os sorrisos rarearem conforme a idade avança, uma parte desse pessoal todo já deve ter se surpreendido com um prazer repentino surgido numa atividade despretensiosa.

Esse aí da foto é meu pai, contemplando uma das últimas músicas tocadas por Paul McCartney, na apresentação do dia 25, em São Paulo. Descobriu o prazer de "coçar a barriga da guitarra", como diria minha avó, por volta dos 14 anos. Montou bandinhas pelo bairro em que nasceu (e onde mora até hoje) e se apresentou em muitos bares "chapados de gente", como ele gosta de dizer, ao longo dos últimos quarenta e poucos anos. As canções dos Beatles, principalmente da fase mais pop da banda, permearam o início de sua adolescência e marcam presença no repertório de seus grupos até hoje - e claro, também nas suas mais doces lembranças.

Se alguém diz que ele está velho para isso, que tinha de se concentrar no trabalho e em pagar as contas e dívidas ou que essa vida traz o cigarro e a bebida (confesso, como um filho mais chato e responsável que o pai, já fiz algumas dessas críticas), ele responde de bate-pronto: "Eu vou morrer tocando"!

Não sei no que meu velho estava pensando quando minha irmã tirou essa foto. Mas ao olhá-lo nessa posição, após ter se emocionado tanto no show, pensei algo como: a vida é tão difícil. Vendem-nos sonhos e, quando acreditamos neles, são arrancados de nós. Muitas vezes, ele está certo... Só com cachaça pra aguentar tanta coisa que a gente não queria. Só que por mais que essa seja a regra na vida, tem certos prazeres que vão morrer com a gente.

Na saída do show, empolgado e aos 62 anos, ele me perguntou: "Filhão, vamos montar uma banda"?

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

A emoção daquele canto da Barra Funda

Quando eu era moleque, desenhava o estádio Palestra Itália, casa do Palmeiras, mais ou menos do jeito que tá aí em cima. As bolinhas representavam as cabeças dos trinta e poucos mil torcedores que lotavam as arquibancadas do velho estádio, palco de tantos jogos importantes do time que ganhava tudo nos anos 90.

Depois de sonhar tanto em conhecê-lo, só fui subir os degraus de suas arquibancadas em 1998, no jogo da primeira fase da Copa do Brasil (da qual seríamos campeões), contra o CSA de Alagoas. Foi 3x0, com dois gols de Arce (ambos de falta) e Cléber. Fazia um mês que o palestrino mais "verde" que eu conhecia havia falecido: meu avô Gilberto José Cerri. Foi a forma que eu e meu pai encontramos para homenageá-lo.

Só fui retornar ao Palestra em 2006, num despretensioso jogo do Paulistão, contra a Portuguesa Santista. Eu já contava 20 anos e me emocionei com cada um dos gols do 4x0, ainda mais com a presença de Edmundo no comando do ataque, que marcou seu tento no goleiro Ronaldo (aquele ex-Corinthians).

A partir de então, mesmo morando longe de São Paulo, eu sempre dava um jeito de fazer algumas visitas ao "jardim suspenso" ao longo do ano - elas se intensificaram quando voltei a morar na região.

No total, fui a 23 jogos no antigo Palestra. Vi poucos craques de seleção e muitos perebas, de 2006 a 2010. Nada muito diferente dos quatro anos e meio em que passamos por Pacaembu, Canindé e Arena Barueri.

Mesmo assim, a emoção de entrar pelo portão da Turiassu, passar pelo fosso e subir correndo os degraus para ver o símbolo do Palmeiras sobre o jardim suspenso, com os olhos já marejados... Eu nunca senti em outro lugar.

Hoje voltaremos para casa. Se vamos vencer, não sei. Mas eu e meu pai estaremos lá, lembrando dos bons tempos, do meu avô (que nos fez palmeirenses), também esperançosos com o futuro e sentindo a emoção que só ali, naquele canto da Barra Funda, um palestrino pode sentir.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Tirinha hipnótica nº 2 - Volume morto

Clique na imagem para ver em alta resolução. Gostou? Confira a outra tirinha hipnótica clicando aqui.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Tão clichê quanto mar e paixão



Era jovem, mas a vida na cidade e as obrigações que deixavam suas costas cada dia mais curvas fizeram-no ficar mais de quatro anos sem ver o mar. Lembrava-se das poucas praias que havia visitado e de suas belezas particulares, mas isso era raro - só quando alguém comentava sobre viagens de férias ou de fim de ano.

Naquele dia, cinzento como os últimos, recusou convites dos amigos para ir ao bar após o trabalho. Bateu o ponto, pegou a condução e, por não saber o que fazer, vagou pelas ruas do bairro tentando observar com o olhar mais atento o entorno tão rotineiro. Não conseguiu. "O que eu tô tentando fazer"?

Voltou para casa e, em mais um gesto automático, ligou a tevê. Zapeou os canais sem prestar atenção, até que se atraiu pela beleza da atriz principal de um filme nacional antigo, em preto e branco. Pegou no sono e acordou às 4h30, assustado, com o controle remoto na mão.

No sonho que tivera, deparava-se consigo próprio. Seu outro "eu", abatido, não esboçava reação a nenhum estímulo. Quando se preparava para socar seu semelhante, viu o interlocutor se transformar em uma mulher alta, que o beijou de forma ardente. O prazer virou medo quando, num instante, ela cresceu e o engoliu. Sentiu o frio na barriga da queda livre até perceber que estava molhado. E boiava no mar.

Sorriu. Com o coração quente, levantou-se do sofá e saiu correndo em direção à rodoviária. Pegou o primeiro ônibus com destino ao litoral.

Seu semblante misturava ansiedade e alegria. Cada curva do caminho, cada ouvido tampado e cada cheiro de maresia aumentavam seu sorriso.

Ao chegar, transpôs três quarteirões correndo como uma criança, já com lágrimas nos olhos, em direção à praia. A camisa ficara pelo caminho, assim como os sapatos. Quando não havia mais nenhum obstáculo entre ele e o mar, parou na beira, sem deixar seus pés se molharem. Visivelmente emocionado, observava, estático, o objeto de sua saudade.

Uma moça, intrigada com o que via, perguntou ao rapaz se ele estava bem. Ele respondeu:

-Sabe? Quando a gente fica muito tempo sem ver o mar, por mais que se lembre do barulho das ondas, da areia fina nos pés, da indistinção dos azuis no horizonte, por mais que racionalmente esteja tudo lá na nossa cabeça, quando damos de cara com sua grandeza que nos abraça e envolve todos os nossos sentidos, é como se fosse a primeira vez. É tão bom quanto da primeira vez. A memória não dá conta dessa imensidão que puxa a gente e escancara nossa pequenez ao mesmo tempo em que nos hipnotiza com o vaivém das ondas. Mostra a nossa insignificância enquanto percebemos como é bom... Como é bom estar vivo. E mesmo que por um pequeno instante, dá sentido à nossa vida.

E correu para os braços molhados e quentes da paixão.