Certa vez li um livro do Kafka chamado "Sonhos". Nada mais é do que uma coletânea de sonhos que o autor transcrevia logo ao acordar, em diversos períodos da vida. Há uma frase dele próprio na contracapa do livro: "escrever uma autobiografia me daria grande prazer, pois seria tão fácil quanto anotar sonhos".
Os sonhos embaralham as nossas percepções do real e nos colocam em um filme abstrato em que nos é dado o papel principal. Eles brincam com sentimentos tão profundos de formas tão simbólicas que, às vezes, podem ser, na hora em que são escritos, a "literatura das nossas vidas". E o mais fantástico disso é que sequer lembramos desse "acordar pra dentro" por mais de algumas poucas horas.
Dia desses encontrei um sonho que anotei em julho de 2012. Aí vai:
"Foi um sonho e ao mesmo tempo um pesadelo. Estranho não seria um bom adjetivo para classificá-lo, já que um sonho “normal” é que está fora dos padrões do que é normal na vida. Estávamos eu e minha companheira andando na rua, à noite, junto com um amigo. Foi então que encontramos outro amigo em comum e os cumprimentos normais se sucederam. Mas a “pilhéria" (brincadeira que parece uma briga) entre os dois amigos em comum confundiu as demais pessoas que passavam pela ruela, que pensavam se tratar realmente de uma briga. Na verdade, foi o pretexto que esperavam.
Tiros para o alto. Num piscar de olhos (ou num passe de mágica, se preferir), estávamos numa balada (boate, danceteria, etc.), mas todos eram reféns do grupo que iria se apresentar. O tempo todo apontavam armas para nós, humilhando-nos. Estávamos sempre no chão, com as mãos na cabeça, mas era como se deslizássemos pelo solo para que mais de uma pessoa tivesse a possibilidade de nos ameaçar.
Num corredor, uma mulher muito bonita estava sentada. Umas sandálias femininas desamarradas estavam no chão, mas não era possível saber de quem eram. Ela me pediu a bolsa de minha amiga (que sei lá como também estava lá) e eu dei. Ela retirou os cartões bancários e perguntou onde estavam os meus. Fiz o movimento de tirá-los da carteira, mas amassei o que uso mais para inutilizá-lo e dei os dois que tinha para a mulher. Ela, obviamente, percebeu e, num gesto de desprezo, devolveu-me ambos.
Na próxima cena, é como se eu tivesse dormido por um tempo. Ao acordar (ainda dentro do sonho), os músicos guardavam os instrumentos e eu comecei a conversar com eles, que retribuíam, mas com chacotas. Perguntei de onde eles eram. Um disse que era são-paulino. Eu falei que era palmeirense, então outro me mandou tomar no cu e todos riram, inclusive eu. Repeti a pergunta e me disseram que eram do Pari. Me despedi cordialmente, eles novamente retribuíram, mas com ironia.
Na saída, dei de cara com uma festa de rua, em que algumas amigas estavam na barraca frontal. Não sei o que estava à venda, mas quando fui cumprimentar uma delas, derrubei um copo d’água no fogão, apagando o fogo. Em seguida, saudei duas amigas da minha mãe e a minha tia, que estava fumando um cigarro de palha ou de maconha e bebendo. Apesar de radicalmente contra entorpecentes e álcool, minha tia não fez menção nenhuma de esconder de mim o cigarro ou a bebida. Aos trancos e barrancos e com a demora para reacender o fogo, ela foi entrando na barraca e dizendo algo como “eu vou arrumar essa porra”.
Foi então que acordei. No entanto, antes dessa passagem, que foi a mais marcante e que me fez despertar de mau humor, houve outra parte, não menos melancólica. Eu estava na casa da minha avó paterna e eu procurava por desenhos, se não me engano, para pintá-los. Encontrei alguns. O primeiro era muito simples e tinha alguns rabiscos, com a face de três pessoas (eu, minha vó e meu pai). O segundo enfocava a mesa da cozinha, com uma galinha ao centro. Era um desenho mais elaborado. O terceiro era um muito bonito, com a figura de uma galinha iluminada pela luz de uma vela. Os traços do sombreado eram nítidos, mas se confundiam com as penas e davam um efeito espetacular".