Precisamos de um cinema panfletário

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Precisamos de um cinema panfletário


Numa das aulas do curso de Ciências Sociais que faço, certa vez, um professor proferiu o seguinte comentário quando falava sobre uma das mais famosas obras de Marx e Engels, o Manifesto Comunista:

-É um panfletão!

O contexto da afirmação, se não me engano, tinha a ver com as diferentes fases das elaborações de Marx. O tom pejorativo do comentário quis inferiorizar a atuação militante e valorizar as teorizações mais "acadêmicas" (se é que podemos chamar com esse nome) do barbudo comunista. Fiz a ressalva entre parênteses porque Marx nunca quis ganhar uma cadeira em universidade para estabelecer sua teoria. Ele queria entender e mudar o mundo, e enxergava a relação fundamental entre teoria e prática, pois propôs uma filosofia que partisse da "terra", fosse ao "céu" e retornasse ao campo material para ser provada na realidade, em suas Teses sobre Feuerbach da Ideologia Alemã. Em O Capital, não esmiuçou à toa os mecanismos mais invisíveis da reprodução da mercadora e da criação do lucro dos patrões. E, no próprio Manifesto, resume conteúdos de significados políticos imensos dirigindo-se a trabalhadores para chamá-los a se unirem contra o estado de coisas que se desenvolvia, pois só eles poderiam alterar as estruturas. Ou seja, não faz sentido separar o que, para o barbudão, era indivisível.

Mas vamos nos ater um pouco ao xingamento do professor de sociologia. Um "panfletário" não é simplesmente uma pessoa que distribui panfletos. Literalmente é, mas  acabou se tornando sinônimo de alguém que não apenas dá acesso a uma informação redigida por uma pessoa ou grupo num pedacinho de papel, mas que tenta convencer outro politicamente de uma ideologia. Como os políticos da ordem e os ricos em geral convencem seus pares com muitas maletas de dinheiro em reuniões em hotéis luxuosos e só sabem o que é panfleto em época de eleição, o termo acabou sendo associado mais aos esquerdistas, imagino eu, pelo fato de ser esse grupo de pessoas que tenta convencer os trabalhadores do próprio poder que têm nas mãos a partir do chamado "trabalho de base" - que consiste não apenas em panfletar para trabalhadores de diversas categorias profissionais, mas também em atuar em sindicatos e comitês de classe. E, ao contrário do que muitos direitosos dizem, ninguém pode compactuar um conteúdo de um panfleto se ele for empurrado goela abaixo. Para que haja aceitação de uma ideia, é preciso debate e discussão em torno dela.

Se pararmos para pensar, os últimos cerca de 30 anos não foram tão frutíferos para os panfletários esquerdistas (esses que realmente querem mudar o mundo). O ascenso do neoliberalismo, a flexibilização de direitos, a queda da União Soviética (que mesmo burocratizada por uma casta privilegiada ainda era um estado operário), entre outros fatores, fizeram com que surgisse a ideia de "fim da história", por meio de Francis Fukuyama. Nela, acreditava-se que o mundo capitalista estava rumando para o fim de suas contradições e que, aos poucos, tudo iria melhorar para todos. O auge dessas ideias data da década de 90 e o termo país "em desenvolvimento" vem dessa época. É bom lembrar que muitos ex-esquerdistas, apesar de discursarem sobre revolução nos dias de festa, capitularam totalmente à tentativa lentíssima e gradualíssima de melhorar as coisas dentro do sistema.

Finalmente o cinema

E é só agora, depois de cinco parágrafos, que vou meter o cinema na história. Nessa época, os filmes, como era de se esperar, continuaram a ser produzidos (em alguns poucos países) e distribuídos em todo mundo. De maneira bem genérica, é possível dizer que houve uma pressão da realidade para que eles se adequassem a esse tipo de ideologia dominante.

Excluindo as exceções e tentando formar uma panorama bem abrangente, no Brasil, após os filmes muitas vezes mais herméticos, mas cheios de conteúdo político do Cinema Novo dos anos 50 e 60, os 80 viveram de chanchadas e os 90 presenciaram o início do que ficou conhecida como Retomada, em que os filmes nacionais voltaram a ser produzidos para exibição em cinemas, geralmente com algum tipo de auxílio governamental.

Inegável que houve uma leva de filmes que expressou contradições do sistema - desde as diversas películas sobre ditadura a documentários que retratavam a miséria de populações excluídas, passando por produções alternativas que tinham a política mais como pano de fundo. Mas não me recordo de algum filme que tenha em seu escopo a proposição de mudanças de paradigma de organização social. Em outras palavras, todo mundo filmava as contradições, mas ninguém dizia o que fazer para superá-las.

Eis que, não mais que de repente, como é de costume no capitalismo, a sujeira começou a sair por debaixo do tapete no mundo e as tais contradições que, teoricamente, tendiam a decrescer foram aumentando do fim da década de 90 e início dos anos 2000, até que a crise de 2008 explodisse, com a bolha imobiliária.

Primavera Árabe, indignados na Espanha, estudantes chilenos, trabalhadores gregos e a própria luta contra o aumento da passagem no Brasil. Tudo isso aconteceu num intervalo menor que quatro anos e representa a reverberação da insatisfação dos trabalhadores e da população em geral com a falta de capacidade desse sistema desigual de conceder demandas democráticas básicas, como ensino público, transporte para todos, emprego, remuneração digna, moradia.

Revoltas e processos revolucionários já não são mais coisa de maluco e muita gente mundo afora tem percebido que greves e manifestações de rua questionando regimes podem conquistar vitórias (mesmo que parciais). A tendência é de crescimento de protestos.

Certo. Se a conjuntura política está efervescente no mundo todo e no Brasil (como há muito não se via), o que esperar do cinema nacional? Reflexos de tudo isso certamente irão aparecer mesmo na indústria cinematográfica (já há alguns documentários sobre as Jornadas de Junho), mas num momento em que as tecnologias para captação de imagens e de áudio e para edição já estão muito mais acessíveis e os métodos de divulgação de conteúdo são diversos e bem efetivos, eu acho que está na hora de emergir um cinema não apenas que mostre as subjetividades e os dramas pessoais que pululam das contradições do sistema, mas que proponha ideias que possam levar ao questionamento do capitalismo, propagandeando uma sociedade em que todos sejam trabalhadores e tenham as mesmas condições. Ou seja, precisamos de um cinema panfletário! Um cinema que defenda uma ideia e seja ponto de partida para muitos debates acerca de como uma nova sociedade pode ser criada. E se isso é ser panfletário, que tenhamos orgulho em sê-lo.

E o exemplo a ser seguido, em minha modesta opinião, é o da série Marx ha vuelto, produzida pelo Instituto del Pensamiento Socialista Karl Marx (IPS), pela TV do Partido de los Trabajadores Socialistas (TV PTS) e pelo Contraimagem. Ela trata, vejam vocês, justamente do maior panfleto de todos os tempos, do qual falamos no início do texto, e que segue convencendo pessoas a militarem pelo socialismo até hoje: O Manifesto Comunista.

Os capítulos da produção ficcional têm pouco mais de dez minutos e o intuito é mostrar a atualidade do pensamento de Marx, misturando, de forma bem dinâmica, o dia a dia de um trabalhador gráfico, animações que retratam crises e contradições do sistema, e trechos do Manifesto explicados por um Marx que voltou ao nosso tempo e conversa com demais trabalhadores, de forma informal, num bar, que poderia ser o da esquina da sua casa. E, como no panfleto de Marx, mostra que só os trabalhadores unidos podem superar o capitalismo.

Recomendo fortemente a todos e espero que sirva de inspiração para quem tem uma camerazinha bem marromenos na mão e ideias revolucionárias na cabeça.

Assista abaixo aos quatro episódios com legendas em português:


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Metalinguagem: esse tipo de cinema seria o que eu faria agora se me fosse dada liberdade e possibilidade, mas não significa que eu considere apenas filmes que têm a propaganda socialista como bons - isso seria absurdo - estou elaborando um post a respeito para tentar aprofundar minha concepção. Para saber mais sobre a conjuntura política dos últimos 30 anos, clique aqui.