Mercy Zidane: 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Balanço mercyzidânico


Esses 40 quadradinhos aí de cima representam os 40 posts do caótico 2016, no comparativamente menos caótico Mercy Zidane, que completou dez "temporadas" este ano.

Montando esse mosaico pensei que, por 40 vezes, em 40 dias distintos de 40 semanas diferentes, consegui parar, no meio da correria trabalho-faculdade-vida de 2016 para organizar ideias, batê-las nas teclas, selecionar tudo e apertar delete, reescrevê-las, desenhá-las, desenhá-las de novo, desenhá-las outra vez, ficar satisfeito algumas vezes, noutras nem tanto (mas postar assim mesmo porque não dava tempo), ter feito algumas pessoas pensarem, outras ignorarem, ter aumentado um pouco a baixa mas leal audiência vinda de grandes amigos e poucos desconhecidos (e que me ajuda a pensar num monte de coisas - e talvez, no fim das contas, o blog seja sobre isso de "pensar um pouco").

Comigo as coisas são meio vagarosas, mas, permita-me a modéstia, tenho o vício da persistência. Aprendo há dez anos as dificuldades e as delícias de escrever e, há dois e meio, me aventuro na muito mais penosa tarefa de desenhar. Acho que os processos estão me abrindo novas possibilidades de pensar e de materializar (ou virtualizar) coisas que brotam da cachola.

Obrigado a quem abriu qualquer página deste blog ao longo do ano (desde que você não seja um bot). Mais posts desconexos o aguardam em 2017.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

As capivaras da marginal



 Plataforma da linha férrea da marginal Pinheiros. Na estação Vila Olímpia, às vezes o trem chegava capenga, sem metade dos vagões. Densidade que fazia o frio mais rigoroso virar calor insuportável por debaixo das camadas de blusas e cachecóis. Por alguns quilômetros de linha quase reta, o inferno no inverno só acabava se a massa toda decidisse debandar, ou se ela te deixasse ser expelido (um pedido de licença costumava não bastar).

Subir as escadas com mochila nas costas para atravessar a ponte. Dava até para esquecer do fedor do esgoto desaguado no leito, com garrafas, pneus e um tanto de espuma boiando, e caminhar olhando o pôr do sol no horário de verão com um sorrisinho no rosto enquanto os carros engarrafados buzinavam e o fone de ouvido concentrava a mente em John Lennon cantando "Oh Yoko".

Esse cenário deslumbrante, típico da Zona Oeste de São Paulo por volta de 2010, só ficaria completo com as capivaras, que saíam do "mar de merda", que na verdade é um rio, e descansavam nas bordas, chocando as crianças nos bancos de trás dos automóveis - elas provavelmente nunca tinham visto animais maiores que cachorros. Muita gente nas cumbucas de metal nem notava os bichos, nem pensava em como esses ratões podiam sobreviver a tanto, a tanto... São Paulo.

Se nós não pensávamos nelas, elas certamente não estavam preocupadas conosco. Eu seguia meu caminho, sem sofrer pela falta de afeto das peludas, pegando ônibus, aulas-ônibus (cheias de pessoas com fisionomias de passageiros cansados, como disse um camarada), voltando tarde, e não me lembrava de procurar na Wikipedia sobre esses animais tão simpaticamente chocantes: nadando na merda com fofura, respirando poluição com tranquilidade. Tão parecidos conosco.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O que Game of Thrones tem a ver com a política brasileira dos últimos meses?

Imagem: Adriano Kitani / divulgação

 Mesmo que você nunca tenha assistido a um episódio sequer da famosa série gringa (que é adaptada de livros de George R. R. Martin), já deve ter ouvido falar de sua trama recheada de disputas pelo poder, violência, conchavos entre lordes e por aí vai. No Brasil, coisas do tipo têm ocorrido com mais frequência desde a segunda eleição de Dilma, que acabou "impichada", não é verdade?

"Sim, só que isso eu já sabia". Ok, mas duvido que você faça relações tão sagazes quanto as que estarão presentes na história em quadrinhos Jogo do Trono de Pau-Brasil, de Adriano Kitani e Enio Lourenço.

Os dois estão fazendo um financiamento coletivo no Catarse para materializarem a ideia em HQs de 24 páginas, coloridas, em formato A4. Por apenas 20 mangos você recebe a revista completa na sua casa. Também é possível doar valores diferentes, com bonificações variáveis de acordo com o montante.
 
A dupla já fez outro trabalho do tipo recentemente, com uma HQ muito reveladora sobre refugiados haitianos no Brasil, publicada no site da Agência Pública.

Eu editei com os caras um booktrailer (justamente um trailer sobre o que você vai encontrar no livro) para ajudar na divulgação. Dê uma olhada e adquira o seu exemplar clicando aqui.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Precarization #03 - Reforma da previdência

 Não tá fácil ser trabalhador no Brasil, ainda mais com o absurdo projeto de reforma da previdência proposto pelo governo de Temer, que, caso aprovado, obrigará o contribuinte a trabalhar 49 anos para ter aposentadoria integral.

Para ver os números um e dois do Precarization, clique nos links. Para o ver a charge acima em alta resolução, clique nela.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A velha, a cana e a bola

 Em 2014, o futebol me fez muito triste por alguns dias simplesmente devido à transferência de um jogador do Palmeiras para o rival São Paulo. Como escrevi num texto, o sentimento era o de que algo grave havia acontecido, como demissão de um emprego ou briga com grandes amigos, mesmo eu jamais tendo conhecido o centroavante que hoje está ganhando rios de dinheiro na China.

Duas semanas e meia atrás, minha avó chegou ao hospital. A família se mobilizou e a situação parecia não ser grave. Eu tinha ingresso para o jogo Palmeiras x Botafogo, muito importante para o iminente título alviverde. Fui, com um sentimento estranho, como se a festa, a tensão e a empolgação não importassem tanto. A velha, antes de ir pro hospital, tentou me ligar para falar da partida. O celular não deu sinal no sábado à noite.

Ganhamos. Pensei na parmerense na cama de hospital e em seu falecido marido, meu avô, que me fez seguir essa paixão. Percebi que ele realmente estava mal de saúde em 97, quando não sabia que o Palmeiras havia disputado a final do Brasileirão contra o Vasco de Edmundo, perdendo o título com dois empates por 0x0.

Na terça seguinte, meu pai preocupado. Sentamos no bar e a cana veio. Passava um jogo da Champions League - Sporting x Real Madrid. Eu me lembro como se fosse hoje de quando vimos o fim do jejum do Palmeiras, em 93, também à tarde, noutro boteco.

"Tanta coisa ruim acontecendo... Agora o momento mais feliz do dia", disse ele, tomando a pinga com limão. Olhos marejados. "Que bom que você veio ficar um pouquinho aqui comigo."

A velha foi para a UTI. Os corações se apertavam e conselhos ruins se multiplicavam, mas ela melhorou.

Palmeiras x Chapecoense, o jogo do título. Minha mãe e minha irmã ajudando meu pai. A prima no hospital. Fui ao jogo. Tomei a cerveja que deveria pra esquecer as pancadas e abrir espaço pro alento. O gol veio cedo e confirmou o que todos sabíamos: seríamos campeões depois de 22 anos. Muita gente chorava. Eu respirava fundo. Estava acontecendo.

Começou a festa. Cerveja. Fui com Pedro até a Henrique Schaumann, atrás do trio elétrico dos jogadores chapados. Pulamos, bebemos, cantamos, vibramos até às duas da manhã de um domingo.

Os jogadores adversários daquela partida inesquecível, de repente, estão mortos, vítimas de um acidente de avião, e o título tão sonhado não tem mais graça de ser comemorado. É como se algo grave tivesse acontecido com alguém da família.

A pinga curtida no limão desceu rápido e deu sono e amnésia. Ligo e ninguém atende... Zapeio os canais de esporte enquanto a velha sofre, pensando em tudo, amarrada na cama.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Este texto não será encontrado


O mar de textos engraçadinhos, as intermináveis listas de dez coisas mais legais para anestesiar a chatice do trabalho, as manchetes-iscas pra você olhar no que deu (mesmo sabendo que não deu em nada).

"Relevância" irrelevante. Engajamento com comentários sem sentido, sede por visibilidade, por troca de divulgação, pelo destaque.

Há conteúdo na web que foge disso... E também há alguns textos, fotos e vídeos que, mesmo não fugindo disso, conseguem ser interessantes.

Mas é difícil achar normal que o algoritmo elaborado com brilhantes e frias combinações de zero e um consiga me informar com precisão que um texto com palavras repetidas seja "importante".

Um conteúdo que me emociona precisa ser tagueado como "texto emocionante"? Precisa ter a palavra "emoção" entuchada mil vezes em seu corpo?

O meu mais sincero foda-se para as técnicas de Search Engine Optimization (SEO) que robotizam as trocas de informação e desumanizam a linguagem. Um viva à irrelevância.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Papo de pomba

 A  única inspiração que surgiu nesta semana foi essa. Para ver outras charges, clique aqui.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Grito de "porco" no tiro de meta: usando o amor do torcedor para combater a homofobia



 Quem foi a primeira pessoa a gastar seu tempo livre para fazer uma flâmula colorida e agitá-la na arquibancada para incentivar seu time de football? Quando surgiu o bandeirão? Como foi composta a primeiríssima música original cantada em uníssono num estádio lotado? Quem foi que teve a ideia de vender pipoca e churrasquinho para ganhar um troco na saída do jogo?

Essa atmosfera riquíssima que envolve uma partida de futebol in loco (e que as novas arenas brasileiras tentam amenizar e a Polícia Militar de São Paulo luta para proibir - palavra adorada pela corporação) está cheia de contribuições de anônimos; é uma eterna construção coletiva. Algumas atitudes surgem espontaneamente em tudo quanto é lugar, outras são tradições locais e ainda há as que se espalham como pragas com o mínimo contato entre torcidas, seja em torneios continentais, mundiais ou até via televisão.

Certos atos não são fortes o suficiente para resistirem ao tempo, outros duram até os dias atuais e fazem parte do ritual futebolístico.

Há pouco tempo os estádios brasileiros apresentaram uma péssima novidade, dessas de rápida viralização: o grito de "bicha". Quando o goleiro do time adversário se prepara para bater um tiro de meta, os torcedores locais gritam "eeeeeeeeeeeeeeeeee..." num crescente que só é interrompido quando o arqueiro chuta a bola para o campo adversário e os presentes berram: "bichaaaaa".

A origem?


O grito ganhou força em terras tupiniquins em 2014, na Copa do Mundo (sim, mais um "legado da Copa"). Na partida entre Brasil e México, os americanos do norte abusavam do ritual descrito no parágrafo anterior, só que em vez de "bicha", gritavam "puto" - que tem o mesmo significado: homossexual. Para retrucar o que seria um xingamento, os brasileiros adaptaram a palavra: "bicha". Pouco tempo após o término do certame internacional, torcedores de vários times do país se sentiam familiarizados com a "provocação".

Segundo a infalível internet, o grito é oriundo do México e está ligado ao goleiro Oswaldo Sanchéz, mas há diferentes versões da história - a que me pareceu mais aceitável foi a seguinte: Sanchéz jogava no Atlas, de Guadalajara, e se transferiu para o América; anos mais tarde, em 1999, voltou à cidade natal para atuar no Chivas, que tem forte rivalidade com o Atlas. O arqueiro teria dito que era agradecido ao Atlas, mas que seu coração sempre pertenceu ao Chivas. Os torcedores do rojinegros expressaram seu ódio com relação ao ex-jogador por meio do grito de "puto" nos tiros de meta de um clássico tapatío, como é conhecido o jogo entre as duas agremiações de Guadalajara, em 2003.

O ato se alastrou por todas as torcidas mexicanas e chegou à seleção nacional. Os berros foram ouvidos nos jogos do México nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. Foi apenas o contato mais pessoal, vindo com a Copa de 2014, que fez o ritual homofóbico dar as caras em jogos de times da primeira divisão do Brasil.

Uma eficaz e perspicaz iniciativa

 

Após diversas ameaças, a Fifa, entidade máxima do futebol, multou 11 federações por comportamento homofóbico de suas torcidas, incluindo as do Brasil e do México em outubro de 2016, em jogos válidos para eliminatórias do torneio mundial de 2018. No país da América do Norte, a federação nacional chegou a lançar uma campanha para evitar tal comportamento por parte da hinchada, aparentemente com pouca adesão.

O Brasil é um país em que o futebol, tratado como "reduto do macho", é uma das válvulas de escape mais fortes para expressar o machismo e a homofobia (até por isso a camisa 24 é informalmente banida por estas bandas) e tudo o que não precisávamos era de mais uma tradição idiota. Mas já que ela se estabeleceu, como combatê-la?

Um grupo de torcedores do Palmeiras autodenominado M20-9 lançou uma campanha virtual inspirada em games dos anos 90 para pedir que a torcida troque o "bicha" pelo "porco" nos tiros de meta do goleiro adversário. Assim, em vez de alastrar a homofobia, o palmeirense exalta o mascote de seu próprio time.

Confira aqui e confira o vídeo na íntegra (não consegui embedar direto do Facebook).

A campanha não faz com que o homofóbico questione sua "brincadeira inofensiva" num dos países que mais mata LGBTTI no mundo, pois ela não é um combate frontal ao preconceito - apenas insta o apaixonado pelo time a fazer a "pressão do jeito certo"; mas é extremamente perspicaz ao usar o sentimento mais valioso para um torcedor (o amor ao time) como arma para jogar esse nova tradição para longe. É melhor combater a homofobia sem esse grito estúpido de "bicha" do que com ele...

E o que aconteceu na partida do Palmeiras contra o Sport? O negócio deu certo. Eu fui ao jogo e pude ouvir os gritos de "porco" na hora do tiro de meta do goleiro Magrão. Não houve muitos tiros de meta, é verdade, e não sei se o setor do Allianz Parque em que eu estava tinha mais gente disposta a abraçar a campanha do que os demais, mas o fato é que funcionou.

Se analisarmos em termos táticos, talvez uma campanha mais combativa e que colocasse o dedo na ferida, mostrando como o torcedor que grita "bicha" está sendo escroto e perpetuando violências não fosse tão eficaz com a grande quantidade de homofóbicos e machistas que é maioria em estádios e que não tem a cabeça aberta para se questionar. Dessa forma, grito poderia simplesmente perdurar por anos a fio no Palestra.

A luta contra a irracionalidade da homofobia é longa e dura, ainda mais no futebol, mas esse pequeno ato, com suas limitações, é muito importante e precisa se tornar uma marca registrada não apenas do Palmeiras, mas de todas as torcidas do Brasil.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Monstro Motivacional #2

 Essa é a primeira tira que pinto com aquarela. Não ficou uma maravilha e a qualidade quando se tira a foto fica bem diferente, mas tá valendo. Ela faz parte do meu inktober, que tá lá no Instagram.

Para ver o Monstro Motivacional #1, clique aqui.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Sobre amor romântico e a chatice das canções do rádio



 Se fosse possível compilar e classificar todas as canções (aquelas músicas produzidas com base em uma letra cantada por voz humana e acompanhadas por instrumentos musicais) já feitas, eu chutaria, baseado no meu preciso achismo, que mais de 75% delas têm um único tema: o amor.

"Será que tinha tanta música de amor, sei lá... Na Europa do século X? Ou nas organizações sociais indígenas do Brasil antes de 1500"? Não, só que como a produção de canções no último século cresceu exponencialmente, muito influenciada pelo individualismo ocidental e pelos mercados europeu e estadunidense, mantenho o meu chute aí de cima. Mas voltemos ao ponto central da questão...

Ahhhhh, o amor. Esse sentimento tão inexplicável, mágico, citado por zilhões de poetas, "impossível" de ser definido. Qual é o principal ensinamento que eles nos passa? Um bem assustador: não há qualquer possibilidade de ser feliz sem o amor. Tá todo mundo atrás de um xodó. Como diria Arnaldo Antunes no álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, dos Titãs, "uma pessoa boa quer amor, uma pessoa má quer amor, todo mundo quer amor de verdade".



A paixão acelera o coração, faz tremer as pernas, enrubesce. O amor dá saudades, é companheiro e aconchegante. Mas todo mundo que teve uma relação forte com outra pessoa já se perguntou se realmente a amou... E mesmo quando a resposta foi positiva, refez a questão depois que o sentimento acabou, às vezes mudando a resposta. Depois de uma desilusão ou quando a rotina transforma o sexo em algo mais chato do que assistir televisão, muita gente se pergunta se o amor, em geral, existe.

Li um texto curto e bem legal da Laura Pires sobre o tema, publicado em 2014. Com base em seus estudos de mestrado sobre o discurso do amor romântico, Pires o desconstrói e incentiva o leitor a pensar que o amor nada mais é do que uma relação de amizade com respeito intenso em que os indivíduos querem passar algum tempo (não necessariamente todo o tempo) juntos, algo muito menos mágico e indescritível do que usualmente se pensa. Nessa linha, ela inclusive fala das possibilidades de relacionamentos abertos e poliamorosos, menos baseados em posse (mesmo estando longe de serem perfeitos, em minha opinião).

Só que o discurso do amor romântico que permeia várias esferas da vida faz acreditarmos que o destino reserva a pessoa perfeita que irá dividir a vida toda conosco com a mesma intensidade, após décadas de convivência, do dia do primeiro beijo. Há possessividade, obrigações e negações de vontades. Promete-se o amor eterno diante do padre ou do juiz, sem a convicção do cumprimento. E não por falta de "amor", mas simplesmente porque nós e as relações que nutrimos mudam com o passar do tempo - e não há nada de errado com isso.

A história se repete, é claro, nas letras de canções radiofônicas (ou emitidas via streaming, como fica cada vez mais comum). Temos aí a profusão de músicas de amor cheias de clichês românticos difíceis de engolir. "Você é meu sol", "Amor eterno", "Sempre vou te esperar" e outras frases parecidas, em diversos idiomas, surgem todos os dias e podem ser ouvidas em qualquer lista de Spotify, Deezer ou nas rádios FM.

Em algumas vezes a melodia agrada e saímos repetindo a letra como se a mensagem transmitida fosse neutra, já que falar de amor é tão comum e genérico que pouca gente presta atenção. É uma muleta, é como falar de um ponto em que não há discordância. Não que alguns (apenas alguns) autores de canções não estejam realmente apaixonados ou amando (por mais questionável que a definição seja) quando produzem suas obras, mas é mais fácil falar de um tema tão amplamente aceito do que de toda a maluquice que existe no mundo para além das aflições de nossos corações, ou do que questionar o amor romântico, desconstrui-lo e duvidar da ideia de que o amor é tão essencial assim para todos.

Uma exceção que, junto com o texto da Laura, me fez pensar em tudo isso foi a música "Nós Dois", cantada por Karina Zeviani no álbum "Saudade", do Thievery Corporation. Nela, a interlocutora está nutrindo forte sentimento por uma pessoa. Sonhos são construídos em conjunto, mas em vez da jura de amor eterno, o que se ouve é uma promessa de "curtir enquanto a vida nos deixar", "enquanto for bom pra você e para mim", seguindo o conselho de Vinícius em Soneto da Fidelidade: que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.



O amor, ou essa relação de amizade com respeito e compartilhamento do tempo, não precisa ser eterno para valer a pena ou dar certo. Precisa apenas existir. E as canções com essa temática, quando sinceras, mesmo não tendo tanta chance de sucesso, têm mais possibilidade de tocar as pessoas.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Conheça e lute contra a PEC 241


A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241 está ficando popular como PEC da maldade, do fim do mundo, da morte... E a imprensa, por outro lado, chama-a de PEC do reequilíbrio de gastos, PEC do teto. Ela foi aprovada em primeira votação na Câmara em 10 de outubro. Ainda haverá tramitação na própria Câmara e no Senado antes que ela seja realmente aprovada e passe a valer, a partir de 2017.

Basicamente, ela é um absurdo desse governo golpista. Proposta pelo governo de Michel Temer e pelo ministro da fazenda interino Henrique Meirelles, irá, por exemplo, congelar investimentos (limitando-os ao reajuste de índice inflacionário) em saúde e educação no Brasil por 20 anos para que o país supostamente volte a crescer. Os ricos não terão suas fortunas e heranças taxadas e o imposto progressivo não será aplicado; são os pobres que vão pagar pela crise. Sem saúde e educação, pagarão com falta de perspectiva, subempregos e com suas próprias vidas devido à falta de recursos na saúde pública.

Veja aqui uma lista de links para conhecer várias opiniões a respeito da PEC. Haverá atos em diversas cidades contra o absurdo.

O desenho faz parte do Inktober 2016 e postei no Instagram.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Raio privatizador paulistano

Parece que o tal João pretende fazer a festa de seus amigos da iniciativa privada em São Paulo a partir de 2017. Se você vir um suéter voador pelos céus da capital, tome cuidado!

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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Questões




Quando sobra um pedaço de tempo amassado e as ideias tentam correr o mais longe que as sinapses permitem, surgem questões.

Quantas pessoas já viveram no mundo desde que nossos corpos se desenvolveram para serem o que são? Quantos pensamentos incríveis cada um desses universos de carne e osso teve a partir de estímulos da vida que fica cada dia mais maluca, mas que nunca deixou de sê-la? Quantos, tão incríveis, ficaram guardados, mudos e sumiram com seus donos?

Filas de milhões de mortos. Estamos na ponta delas. Sustentaremos a herança desses zumbis na eterna tentativa de superá-los. Coletivamente e/ou com nossas subjetividades, queremos fazer "história".

Ou menos, ou apenas marcar nossas existências. Estivemos aqui. Vivemos, fizemos coisas, como todo mundo. Tentamos o diferente e não conseguimos, na maioria das vezes. Porque é impossível nos descolarmos de tudo e é tão mais fácil arriscar no certo. Tão mais chato.

O tempo vai nos enterrar sem piedade, eliminando rastros, despessoalizando ideias. O tataravô do bisavô respirou o mesmo ar que passa pelos nossos pulmões. Sequer sabemos seus nomes.

Nossos gritos e fotos e textos e discursos vão se apagar. Algumas ideias vão se repetir nos cérebros que nem nasceram.

Outras, conosco vão desaparecer.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Enquanto isso, no mundo das metáforas de Temer...

Sim, todo mundo tem o direito de se equivocar em algum momento. Mas resolvi pegar no pé do Drácula porque, além de ser um golpista, foi exaltado por parte da imprensa como uma pessoa "culta" e "que fala português correto" (só por ter usado uma esdrúxula mesóclise). Se o mesmo fato ocorresse com os petistas Lula e Dilma, os colunistas reaças e com ranço antipobre iriam cair de pau. Dessa vez, no entanto, fizeram vista grossa.

Para quem não viu a notícia, Temer disse que se sentia como Carlos Magno, da Távola Redonda.

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terça-feira, 6 de setembro de 2016

O que será desse Fora Temer?


É amigos... O golpe se consumou, mostrando como o presidencialismo de coalizão brasileiro é frágil, e as manifestações de rua começaram. Dilma quis ir contra a maré econômica ao fim de seu primeiro mandato, tentando forçar o crescimento mesmo com a tendência internacional contrária. Não deu. Reviu sua posição e escolheu dar remédios amargos à população, sem citar isso em sua campanha de reeleição. A popularidade caiu, a base aliada no congresso debandou. "Se a Dilma tá implantando a agenda mais 'à direita', por que não colocamos um dos nossos?", devem ter pensado os banqueiros e industriais em suas mansões, enquanto o desemprego aumentava. Alguns meses depois, pasme, Temer ostenta a faixa verde e amarela no peito devido a um "crime de responsabilidade" que todo o governante comete (mas que só Dilma pagou).

O poeta está livre para fazer o que quiser, já que não pode se eleger em 2018. Comprometido com as elites e sem medo de medidas impopulares, nosso drácula já inicia os cortes na carne dos trabalhadores. A aposentadoria e a CLT (que será "modernizada") devem ser as primeiras grandes vítimas, para além de várias coisas absurdas já em andamento. A precarização do trabalho aparece como solução mágica para fazer com que os ricos mantenham os níveis de lucro enquanto a porcentagem de empregados sobe nas estatísticas oficiais, mesmo que sem as condições mínimas. O Brasil da ordem e do progresso, assim, quer fazer a economia crescer.

 

 "Mas e aí? O que vai acontecer?"

 

Bom, nesse contexto político agitado, com uma sequência de atos tendo acontecido em grandes cidades brasileiras pelo "Fora Temer", toda a esquerda está se perguntando o que vai acontecer e ninguém sabe a resposta, nem os retoricamente enfáticos. Claro que eu também não faço ideia, mas dá pra tentar imaginar cenários a partir dos últimos acontecimentos:

Atos de rua

Eu achava que apenas alguns setores de eleitores petistas iriam para as ruas após o impeachment, mas o sentimento é bem mais amplo. Como bem disse Mario Magalhães, os atos não são "Pró-Dilma", são "Fora Temer". Muita gente que não votou no PT para a presidência na última eleição, ou que só votou no segundo turno para evitar a direita, também tem comparecido às manifestações junto com dilmistas. Apesar de haver uma demanda clara pela saída do atual presidente, não acredito que a simples repetição de atos vá ser efetiva, a menos que tome as proporções alcançadas em junho de 2013 (o que é pouco provável, a menos que a CLT seja totalmente rasgada ou que haja uma greve geral).

PT vai ser omisso e quer mais é que circo pegue fogo

O PT não me parece levantar nenhuma bandeira das manifestações atuais com muito vigor. Isso porque, mesmo sendo minoria atual no congresso e tendo uma presidente impedida, o partido está longe de ter abandonado seu projeto de poder. Sequer o PMDB foi rechaçado por Dilma em sua totalidade (há o PMDB "do bem", como disse em seu interrogatório no Senado)... O PT pensa em ver o circo pegar fogo para voltar à presidência em 2018, possivelmente com Lula. "Greve geral", "assembleia constituinte livre e soberana" e até o limitado "diretas já" devem ficar de lado em nome da construção eleitoral, enquanto o pessoal da parte de baixo da pirâmide paga o pato.

A criminalização de jovens revoltados que quebram vidros e são chamados de black blocs também faz parte desse jogo de tirar o que pode queimar filme de perto do PT.

A esquerda não vai se unir

Quem nunca ouviu que a esquerda precisaria de um inimigo comum para se unificar, como ocorreu na ditadura? Balela. A esquerda brasileira está lotada de problemas e não é uma união devido a uma interferência externa que vai acabar com as milhares de diferenças existentes. E isso ocorre porque há projetos distintos. O PT, que é aliado de banqueiros e industriais, não vai deixar de promover essas alianças - quer governar dentro do capitalismo na corda bamba de conciliar interesses de poderosos com a base eleitoral de origem popular. Isso é muito diferente de projetos que questionam o capitalismo ou até dos que não questionam de forma tão radical, mas que acham absurda alianças com grandes empresários ou as privatizações e repressão já promovidas pelo PT.

Por fim, às vezes o destino nos engana

Mesmo com as perspectivas pouco animadoras em termos pragmáticos, com a realidade apontando para cortes de direitos, é bom lembrar que o destino às vezes brinca com prognósticos, como ocorreu numa simples manifestação contra o aumento da passagem em 2013. A escalada repressiva e os cortes de direitos estão vindo, o que faz a revolta necessária. É tempo de ir pra rua sem ter ilusão que o PT vai ser diferente e sem deixar de fazer críticas ao partido. Vamos ver no que essa realidade distópica vai dar.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Mais uma dose para o homem-coisa


Clique no desenho para ver em alta resolução. Para ver outras coisas parecidas (ou nem tanto), clique aqui.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Saque no saco de saquê na sacada

Bom... O que dizer sobre isso?

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terça-feira, 16 de agosto de 2016

Alento


Fundir a língua com o pão de forma mofado. Enxergar as telas eletrônicas como um espelho quebrado. Sentir que os passos retos são pendulares. Estou com pressa, não me venha com o que não importa. Onde eu posso jogar um tempinho no lixo depois de um dia a menos?

Quando chega o alento, de tão repetido, perde o efeito. O franzido da testa é afogado pela cerveja. Não há tempo a perder para voltar a perder tempo e confundir a vida com tudo de novo.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Brincadeira olímpica realista

É uma piada meio infame, mas essa é minha especialidade. Uma das promessas do tal legado olímpico para o Rio de Janeiro era a despoluição da Baía da Guanabara - algo que muitos técnicos disseram ser inviável na época do anúncio. Eles estavam certos (veja mais aqui). Para além da insalubridade para os esportistas, a população não vai poder aproveitar dessa opção de lazer quando o evento acabar - e muita gente parece ter levado uma graninha nesse processo, já que há acusações de improbidade administrativa na despoluição.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Audax, Leicester, Islândia e as alternativas de jogo num futebol "pegado"

 No começo deste distópico 2016, o modesto Grêmio Osasco Audax, time da grande São Paulo presidido pelo ex-jogador Vampeta e comandado pelo também ex-atleta e promissor treinador Fernando Diniz, fez excelente campanha no campeonato paulista de futebol profissional. Com um elenco repleto de desconhecidos, bateu gigantes como Palmeiras e Corinthians e ficou com um honroso segundo lugar ao término do certame, perdendo a final em jogos duros contra o Santos. A folha salarial da equipe rubra era, em abril, de R$ 350 mil por mês, cerca de 20 vezes menor que a do Corinthians na mesma época.

Atravessemos o Atlântico e vamos à Inglaterra, que organiza o campeonato mais badalado do mundo. Na temporada 2015/2016, o azarão Leicester City venceu um torneio de turno e returno (e não uma copa, mais comum com "zebras"), desbancando Manchester United, Chelsea, Tottenham, Liverpool, Manchester City, etc. A folha salarial da equipe comandada por Claudio Ranieri era de 57 milhões de libras anuais, um quarto da quantia gasta no mesmo período pelo Manchester United, que terminou em quinto lugar.

Ainda em terras europeias, durante a ordeira, pacífica e civilizada Eurocopa 2016 ocorrida na França (risos), uma seleção de um país de 323 mil habitantes chegou às quartas da competição. O time praticamente amador foi comandado por um dentista e eliminou nada menos que a milionária Inglaterra. Na derrota ante os anfitriões, os "vikings" foram valentes e conseguiram marcar dois tentos (5x2 para a França). Heimir Hallgrimsson, o técnico-dentista, ganha R$ 44 milhões de reais a menos por ano que o técnico da Inglaterra, Roy Hodgson.

Após ler esses três insinuantes parágrafos você provavelmente está com a mais terrível das perguntas na ponta da língua: e daí?

Ah, é sempre difícil respondê-la. Mas para sua sorte eu tenho uma teoria de boteco bem aqui na minha manga virtual.

O futebol está absurdamente mais físico e o jogo coletivo tende a prevalecer

Segundo artigo de Fernando Ianni, um futebolista da década de 60 corria quatro quilômetros por partida (sem contar o goleiro, claro). Atualmente, um jogador de futebol pode chegar a correr nada menos que 15,2 quilômetros por jogo, ou seja, quase quatro vezes mais em mais ou menos 50 anos de desenvolvimento do esporte - uma experiência bem bacana para perceber isso é assistir a algum jogo das décadas de 60, 70 ou até 80 do século passado - existem coisas bem legais no YouTube, como as partidas da Copa do Mundo de 1970 (veja aqui o jogo Brasil x Uruguai).

Nos anos 40, a tática WM (3-2-2-3) era bem comum. Surgiu um pouco mais tarde o 4-2-4, que apostava nos pontas de velocidade para furar bloqueios, numa época em que o apoio dos laterais era incomum. Mais algumas décadas depois e o 3-5-2 e o 4-4-2 ganharam muita força, povoando mais o meio de campo para privilegiar a ocupação de espaços e a defesa.

Se o futebol era menos "pegado", teoricamente deveria ser mais comum que um ou outro jogador com incrível capacidade de improvisação, como esses que costumam brotar no Brasil de tempos em tempos, resolvessem jogos e campeonatos, pois a inteligência cognitiva tinha mais espaço para se desenvolver com uma marcação "frouxa".

Em outras palavras, com a preparação física mais nivelada graças à evolução da ciência no esporte em todo o futebol profissional, o esquema tático que privilegia uma peça do jogo muito talentosa fica menos eficiente. Há um punhado de meios de vencer o jogo hoje em dia: com ou sem posse de bola, usando e abusando de contra-ataques de bolas alçadas na área... Mas um que ganhou notoriedade foi o resgatado e desenvolvido pelo Barcelona de Guardiola, inspirado pelo também ex-jogador e técnico Johan Cruijff: troca intensa de passes, compactação, tentativa de recuperação de bola no campo de ataque.

Claro, ele tinha muitos dos melhores jogadores do mundo para realizar esse tipo de jogo entre 2008 e 2012, mas o êxito tremendo acabou influenciando técnicos ao redor do mundo. Ao manter a posse de bola por mais tempo, evita-se o ataque adversário e amplia-se a chance de fazer gols, a marcação intensa facilita a recuperação da posse e a compactação faz com que haja mais opções para construção de jogadas e para organizar o combate.

O Audax pode ser considerado uma tentativa de tiki-taka tupiniquim. Leicester e Islândia nem tanto, mas apostaram também em compactação, marcação alta e saída em velocidade (em maiores ou menores níveis) e obtiveram êxitos importantes. O Corinthians de Tite, Mano e Cristóvão vem praticando um futebol moderno nesse estilo e, mesmo perdendo peças importantes temporada atrás de temporada, se mantém competitivo justamente porque a base do esquema está mantida.

Portanto, para além da retranca e dos chuveiros, táticas comuns a times inferiores em termos técnicos para vencer partidas, a troca de passes e a compactação no futebol de hoje também se mostram efetivas quando bem treinadas, e são mais agradáveis aos olhos, mesmo sendo menos dependentes da improvisação individual.

Será que faz sentido o que foi dito aí em cima? Muita gente vai discordar, já que futebol é essa coisa tão interpretativa e talvez por isso (e certamente por outros motivos) apaixonante.

Por fim, o que dá para cravar sem medo de errar é que esses supersalários da elite do futebol são muitíssimo inflados, e as equipes modestas e exitosas citadas neste humilde artigo comprovam a constatação.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Rotina #3 - Luz


Para ver em alta resolução, clique na imagem. Para ver o Rotina #2, clique aqui.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Oração ao Santo Zuck

Santo Zuck, da Califórnia
Com seu sorriso garageiro
Pega meus dados, sorrateiro
E vende, sem me pagar

Ele é o santo da amizade
Recebo solicitação maluca
De gente que nem vi as fuça
Mas que curte o que eu postar

Um dos que nunca vi
Certo dia fez post indireto
E achei que fosse papo reto
Com a intenção de me atacar

Então tomei a liberdade
De contradizer em caps lock
MALUCO, VAI CARPIR LOTE
Vi nossa amizade acabar

De tanto invejar viagens
E xeretar na vida dos outros
Já me taxaram de louco
Pensaram em me internar

Mas não tiveram coragem
Pois o doutor, nas receitas
Disse, com todas as letras
"A conta... Vai deletar"

Depois de olhar pros gatos
E pras selfies do facebook
Perguntei pra Deus, amiúde
Isso nunca vai terminar?

"Não, o Zuck trabalha muito
Para criar uma novo algoritmo
Transformando a vida num istmo
Rodeada pelo feice-mar"

Pois então pensei um pouco:
Só me resta, com humildade
Publicar essa dura verdade
Rezando pro post bombar

terça-feira, 12 de julho de 2016

Precarization #02 - Reunião dos industriais

Minha singela homenagem à Confederação Nacional das Indústrias (veja mais nesta notícia).

Para dar uma olhada na outra charge da série, clique aqui. Aproveite e siga o MZ nas redes sociais!

terça-feira, 5 de julho de 2016

A esquerda precisa dar uma olhada na questão ambiental



Jogar bituca de cigarro, papel de bala e copinho de café na rua, infelizmente, ainda é um hábito bem comum Brasil adentro. Há certas desculpas razoavelmente aceitáveis, pois deveria haver mais lixeiras nas vias e coletores de bitucas nas saídas de bares... Mesmo assim, com um pouco mais de boa vontade, daria pra evitar essas pequenas poluições tão... Evitáveis (não tinha melhor palavra para definir).

"Ah, mas jogar ou não lixo na rua não vai mudar o modo como ele é gerido nessa sociedade que prioriza o consumo desenfreado", já me disseram colegas esquerdistas enquanto fumavam seus cigarros e preparavam os frenéticos dedos médio e indicador para atirarem a sobra do viciante prazer no meio-fio.

Eu não me convenço por esse tipo de resposta, apesar de a frase inicial do parágrafo anterior não estar errada. Enxergo ainda um certo preconceito da esquerda em geral com a questão ambiental, talvez a pauta menos absorvida das chamadas "pós-materialistas".

Vamos à digressão


Grosso modo, o marxismo clássico tentou explicar como a sociedade capitalista funcionava; o marxismo da virada para o século XX buscou criar modos de tomar o poder para transformar a sociedade. Só que, por volta dos anos 60 do mesmo século, principalmente na Europa, alguns movimentos reivindicavam outras coisas que não necessariamente o poder, e sim representatividade, visibilidade, aceitação. Os principais expoentes foram os movimentos feminista, negro, LGBTTI e ambiental.

Muitos partidos de esquerda e movimentos sociais incorporaram as pautas dos três primeiros grupos, tentando conciliar as necessidades de representação, fim de preconceito, aceitação, inserção no mercado de trabalho, etc., com a luta pelo fim do capitalismo (isso em alguns poucos agrupamentos que não se adaptaram demais à ordem vigente) - até porque toda essa galera, apesar de ser tida como "minoria", na verdade é muito numerosa no Brasil. Já a pauta ambiental, como a resposta padrão sobre o caso da bituca demonstra, sempre ficou mais ligada à clássica frase "isso a gente resolve depois da revolução".

Os ambientalistas geralmente eram mais ligados a camadas médias, certamente não almejavam a tomada do poder e, nas últimas décadas do século XX, apesar do rombo que se formava na camada de ozônio, não tinham a principal barganha para mobilização de massa, na minha opinião: o sentir o problema na carne (e isso mudou bastante desde então).

Voltemos aos dias de hoje

 

Problemas ambientais absurdos pipocam no noticiário do mundo inteiro: da disposição gigantesca de resíduos em aterros, passando por crimes ambientais, desmatamento, extinção de fauna e flora, e chegando nas emissões de CO2 (que desequilibram o efeito estufa) e na poluição em geral (que mata cerca de sete milhões de pessoas anualmente, mais que aids e malária juntas).

Um exemplo categórico bem debaixo do nosso nariz: dois projetos absurdos tramitam no Congresso Nacional. Em ambos (o PL 1.013/2011 e um decreto legislativo), reclama-se a liberação do uso de diesel como combustível para veículos leves. Atualmente, apenas ônibus e caminhões podem usá-lo, já que é muito mais poluente que a gasolina convencional. Em outras palavras, na contramão de algumas medidas tomadas nas principais metrópoles do mundo, o lobby da indústria está vencendo a disputa com a saúde de milhões de pessoas. Nas palavras do médico especialista em poluição atmosférica Paulo Saldiva, "Os veículos a diesel são as principais fontes de compostos como particulados finos e óxidos de nitrogênio e enxofre, que causam problemas sérios de saúde. Deveríamos discutir como ampliar o transporte coletivo e reduzir o uso de diesel, mas o projeto propõe o inverso: mais transporte individual e mais diesel. Ou seja, mais congestionamento, ar mais poluído e, potencialmente, mais mortes precoces”.

Essa pauta provavelmente não será tema de protestos na avenida Paulista ou de artigos em jornais de partidos e movimentos, mas, se a medida entrar em vigor, uma galera vai viver pior e morrer, e não são os que têm ar-condicionado com filtro que retém impurezas.

A materialidade da questão ambiental é mais evidente a cada dia. Na humilde opinião desse jornalista vermelho que trabalha com meio ambiente e consumo, já passou da hora de a esquerda abrir mais os olhos para esse tipo de questão. Concordo que os problemas mais estruturais da sociedade só se resolveriam por completo com uma outra lógica diferente da capitalista, que devastou recursos naturais, entupiu cidades de lixo, matou e criou milhares de pessoas em situação de rua, etc. Mas se formos esperar a revolução chegar para pelo menos pensarmos em fatores que amenizem problemas ambientais é capaz de a vida aqui na superfície já ter ido para o saco.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Precarization #01 - Modernidade

Wow, a modernidade assusta hein!

Comecei essa série intitulada "Precarization". A ideia é soltar uma charge ou tira mais ou menos no mesmo estilo dessa aí de cima (falando sobre o maravilhoso mundo do trabalho precário) ao menos uma vez por mês. Mas quem sabe eu não bata e dobre a meta?

terça-feira, 21 de junho de 2016

Se chorar não adiantasse nada


E se o caminhão de angústias e tristezas, a montanha de raiva e o morrinho das alegrias não pudessem ser levados para fora?

Imagine-os sempre dentro da gente, deformando nossos fígados, criando rugas profundas em nossas testas e nos cantos de nossas bocas, incomodando nossos estômagos com pontadas regulares.

Os olhos não ficariam úmidos ao vermos a cena brega da novela, lembrando de situações parecidas (ou nem tanto) com as vividas por nós. A saudade não surgiria na música que aquela pessoa especial nos fez conhecer.

As despedidas se resumiriam a apertos de mão. Nos reencontros, abraços apertados seriam proibidos.

Não poderíamos tentar (sem conseguir) expressar fisicamente ou com palavras a falta que alguém fez ou fará.

Depois de tanta dor, não teríamos mais vontade de continuar, de planejar, de pensar que, por mais raiva que dê quando dizem que a vida segue, o clichê costuma ser verdadeiro.

Gozaríamos só com filme pornô. Não poderíamos dançar ou cantar.

Deixaríamos o inconformismo com a injustiça de lado. Ficaríamos mais indiferentes do que já somos.

E chorar, então, não adiantaria nada.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Salmo paulistano

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terça-feira, 7 de junho de 2016

As "cenas lamentáveis" e o elitismo dos comentaristas esportivos


As brigas entre as torcidas de futebol acontecem no Brasil desde meados dos anos 80, quando as organizadas de grandes clubes surgiram. A repercussão veio pelas atrocidades que protagonizaram no começo dos 90, com emboscadas, assassinatos, guerras campais... Principalmente em São Paulo. E de lá pra cá, apesar de algumas coisas terem se alterado, a violência vez ou outra explode perto (ou nem tanto) dos estádios - quando isso acontece, surgem os repetidos discursos de 99% dos comentaristas de futebol da TV brasileira: "bandidos" devem ser presos, organizadas devem acabar.

Algumas punições são aprovadas, mas o torcedor organizado insiste em se levantar como um protagonista de anime japonês após sucessivas surras. Ele vê sua torcida mudar de nome, seus instrumentos de percussão e bandeiras serem proibidos, seus sinalizadores serem apreendidos, mas sempre volta para fazer incríveis espetáculos nas arquibancadas e, invariavelmente, "tretar" com seus rivais. Nessas recorrentes "cenas lamentáveis", o discursinho padrão também se repete preguiçosamente na mídia, separando os "bandidos" das organizadas do cidadão de bem que vai com seus filhos ao estádio.

Começando do começo


Torcidas organizadas não são compostas por santinhos. Há, em muitos casos, tráfico e máfia de revenda de ingressos, para além das habituais brigas com rivais (esse ponto será detalhado mais adiante). Muitas torcidas exalam preconceitos, como homofobia e machismo, já que o futebol ainda é um "reduto do macho" na sociedade. Mas é preciso também levar em conta que nem todas são assim. A forma de organização "torcida organizada" não é, por natureza, composta por tráfico, preconceito e revenda de ingresso. Existem algumas que são politizadas e agem inclusive como movimentos sociais, ao se juntarem a certas causas relevantes - mas é inegável que esse tipo de atuação é exceção.

Sim, grandes organizadas de futebol são, em sua maioria, violentas. E isso acontece no mundo todo, inclusive na "civilizada" Europa. O detalhe que faz toda diferença é que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Se a violência está em toda a sociedade e o futebol é parte importante da cultura brasileira, como ele poderia ficar de fora?

Num país em que futebol (assistir e jogar) é uma das poucas formas de lazer baratas, indivíduos sem muitos recursos se veem encantados pela magia do esporte bretão; as reviravoltas, os heróis, a festa da torcida dão o prazer difícil de ser encontrado em outras esferas da vida. Assim, eles fazem dos jogos semanais a grande válvula de escape de suas vidas e se associam a outras pessoas em situação parecida; organizam os espetáculos das torcidas; veem seus esforços beneficiarem o time (em termos motivacionais, entoando cantos e fazendo pirotecnia) e se sentem importantes. Sem contar que, em algumas situações, arranjam maneiras de viver a partir da organizada (revenda de ingressos, tráfico). Como o futebol, apesar de ser resolvido na disputa de bolas que ultrapassam a linha do gol, é um conflito entre equipes, os que levam o time como grande razão de viver acabam liberando a violência represada em cima dos "inimigos" torcedores de times rivais. Com isso, ganham respeito, poder e, às vezes, algum dinheiro. Benefícios importantes para quem nasceu e viveu numa condição social desfavorável.

Tudo que eu disse acima é um achismo longe de ser comprovado cientificamente, e que foi extraído das minhas experiências como frequentador de arquibancada e interessado no tema.

Como lidar?


Não se resolve o problema da violência construindo mais prisões. E não se resolve o problema das organizadas prendendo todos seus membros, pelo menos não no Brasil. Aqui, o buraco é mais embaixo. Se todos forem presos, novos organizados vão surgir e os antigos vão dar um jeito de voltarem, justamente pela conjunção de questões anteriormente citadas. Na Europa, há casos de modelos punitivos que deram certo, banindo alguns indivíduos de estádios, por exemplo. Mas a situação deles é bem diferente da brasileira. Não há saída fácil. Certamente que algumas medidas podem ser tomadas para evitar brigas generalizadas, como policiamento reforçado, redução da carga de ingressos da torcida visitante, banimento de brigões recorrentes, mas é preciso reforçar que elas são apenas ações paliativas, já que a violência no Brasil está bem longe do fim.

Surge então o oportunismo dos comentaristas reaças que dominam a programação das mesas redondas dos canais de TV brasileiros, generalizando todo torcedor que sai de seu assento no estádio como selvagem, fazendo vista grossa para a importância da organizada para o espetáculo e pregando abertamente o modelo mais efetivo e ordeiro para banir não só os brigões do estádio, mas todos que não têm dinheiro: a elitização.

Ela veio com as novas arenas e os preços exorbitantes de seus ingressos, e com a medida recente da torcida única, adotada nos clássicos paulistas e que mata um tanto enorme da alma de uma rivalidade... E muito da graça do futebol. Para não correr riscos no ambiente em que está tornando seu, a elite pretende transformar os estádios em ambientes assépticos, insossos e brancos.

Defensores do jeito confortável e americanizado de torcer, os comentaristas reaças defendem cadeia para todos os organizados sem perceber que não é tapando os olhos para a violência que se chega a algum lugar; querem torcidas sentadas nas poltronas e consumidoras na região em que mais se torce com a paixão em todo o mundo; querem banir os brigões dos estádios levando todos os pobres junto.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Cabelo na sopa

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terça-feira, 24 de maio de 2016

O que Macunaíma tem a ver com Avatar?



Se existia um livro maldito na escola quando eu era adolescente, era Macunaíma, o romance de 1928, de Mário de Andrade. Um clássico da literatura brasileira? Sim, mas odiado por todos os alunos que ousavam ler o original em vez dos resumos mastigados das apostilas pré-vestibular.

"Uma história sem pé nem cabeça", diziam os colegas. "O cara vai de São Paulo ao Nordeste num minuto e a pé; fica falando um monte de nome de fruta desconhecida, de passarinho; ele se transforma em vários bichos e depois volta a ser gente; o livro esquece de contar a história principal. Não faz sentido!"

Com dó da minha cara de pavor em pensar sobre encarar o mar de desconstrução da narrativa tradicional que Macunaíma traria, minha mãe releu a obra para me contar a história antes do vestibular. E ela, que também tinha um pé atrás com o herói e suas aventuras, gostou bastante da leitura. Não dei bola.

Já na faculdade, abrindo a cabeça para muita coisa, decidi que era o momento. Peguei a edição de 1972 com capa azul e folhas razoavelmente amareladas e fui pra cima. Ao fim da rápida leitura, confirmei que tudo aquilo que meus colegas diziam era verdade. Eles só erraram numa coisa: o livro não era chato, era incrível!

A velocidade da narrativa, as lendas indígenas, os ditos populares, o humor, o urbano, a busca pela muiraquitã  (que é muitas vezes esquecida enquanto ocorrem as aventuras do herói e de seus irmãos), a São Paulo que vira metrópole com fábricas, ingleses e trabalhadores, os estrangeiros, a crítica ao português eloquente na Carta Pras Icamiabas (Michel Temer podia dar uma lida nesse romance, inclusive), sem esquecer da já citada desconstrução da narrativa tradicional... É fácil pensar em elementos marcantes do livro mesmo quando puxamos rapidamente pela memória. Mas, antes de tentar extrair um aspecto que faz esse livro tão legal pra mim...

... Façamos, sem preconceito, uma breve análise de um desenho animado pop infantojuvenil


Avatar: A Lenda de Aang não é o mesmo Avatar de James Cameron, que tem aqueles bichos grandes e azuis. Trata-se de um história passada por volta de 1800 num mundo imaginário, criado por Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, e que é dividido em quatro civilizações: a Nação do Fogo, as duas Tribos da Água (do norte e do sul), o Reino da Terra e os Nômades do Ar. O elemento guia de cada uma delas costuma moldar a personalidade dos habitantes dos "países" e também pode ser "dobrado" ou, na tradução adaptada ao português, dominado. Assim, quem nasce na Nação do Fogo, com treino e sorte, desenvolve a capacidade de dominar o fogo, de modo a gerá-lo com a palma da mão. Dobradores de terra podem abrir fendas no chão e mover pedras; já os que dominam a água moldam grandes ondas; os dobradores de ar são capazes de criar ventanias e furacões. De tempos em tempos, nasce o Avatar, o único humano que pode dominar, ao mesmo tempo, todos os elementos para ajudar a recolocar o mundo em equilíbrio.

"Ok, isso não é exatamente original", você pode dizer. É verdade. Avatar, à primeira vista, parece mais um desenho bobinho, daqueles em que o bem sempre vence o mal... Mas não é bem assim. O ponto de vista do mal é levado em conta, contextualizado; e a produção também faz o espectador refletir, sem moralismos, sobre coisas complexas. Em certos episódios, levanta-se a questão de que roubar ou mentir, dependendo da situação, pode ser algo necessário, por exemplo. O anime faz apologia à reflexão e à paciência, algo cada vez mais fora da realidade de muitas crianças. Sem contar a evolução dos personagens, muito carismáticos, o protagonismo das mulheres (a continuação da série teve uma garota como personagem principal), e os roteiros, que te deixam com vontade de assistir a vários episódios em sequência.

O pano de fundo que une todas as sagas do desenho de forma tão especial é a cultura oriental, como este artigo, de David Ehrlich, demonstra muito bem. "Os nomes, os vestuários, a arquitetura, a escrita, os estilos de luta, a política, até mesmo a animação, tudo foi concebido para se assemelhar a aspectos culturais asiáticos, principalmente chineses, japoneses e indianos, entre outros". É uma apropriação por parte dos dois autores estadunidenses de vários elementos orientais, de modo a simplificá-los para caberem num desenho animado infantil - o que faz com que o público não apenas se divirta, mas aprenda um pouco sobre uma visão cultural não dominante.

Em Macunaíma também há algo parecido. Sem pretensão de criar uma enciclopédia da cultura brasileira, Mário de Andrade fez um livro que brinca com toda essa mistureba tupiniquim, lusoitaliana, afrobrasileira e capira, contando uma história com um pano de fundo capaz de mostrar um pouco dos índices de nossa cultura. Do ditado que ninguém sabe de onde veio (mas que todo mundo tem na ponta da língua) à brincadeira com a "preguiça" que os europeus imputaram aos índios brasileiros, Macunaíma dá pistas sobre a visão do autor a respeito da constituição cultural do brasileiro, tão influenciada pelos indígenas, mas cada vez mais engolida pelo modo ocidental de viver.

Avatar também tem esse caldo "indicial", que pode ser superficial por um lado, mas que permite ao interessado conhecer certos aspectos de uma cultura que foge do padrão ocidental. Yin & yiang, meditação, vegetarianismo e kung fu são exemplos que aparecem no pano de fundo do desenho.

Ao ver os blocos de mistura cultural que questionam a visão ocidental padrão em um livro brasileiro de 1928 e em um desenho animado estadunidense de 2005, por mais diferentes que possam ser, e por elas terem a capacidade de despertar a curiosidade para outras visões de mundo, resolvi escrever este texto e fazer o desenho lá de cima, que junta, de forma um tanto inusitada, é verdade, ícones dos dois sincretismos: um Macunaíma preguiçoso em pleno estado avatar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Correndo pra trás

Charge baseada em sugestão do meu amigo Marcos André Andrade, o Marquito. Para ver em alta resolução, clique na imagem.

terça-feira, 10 de maio de 2016

O que seria de nós sem a pirataria digital?


Minha geração, que passou a infância nos anos 90 (com bermudas de surf e quadriculadas), viu o nascimento para o grande público dos fantásticos computadores pessoais. Junto com esses trambolhos mágicos, ouviu os primeiros ruídos da internet discada e saboreou o "surround" do kit multimídia (que eram duas caixinhas de som estridentes). Ah, a tecnologia...

Antes disso e até a internet dar uma melhorada, consumíamos fitas cassete piratas, já que a grana era curta para comprar CDs (esses últimos custavam 20 mangos e eram os melhores presentes para festas com "amigo secreto"). Mesmo assim, a variedade era pequena e a qualidade, baixa.

Quando surgiu o primeiro Napster (hoje um Spotify genérico), percebi que não precisaria do rádio para ouvir uma música na hora em que eu quisesse, e nem teria que comprar um disco inteiro por causa de uma música; abria-se até a possibilidade de conhecer um artista que talvez nem tivesse lançado uma canção em CD, ou que jamais seria contratado por uma grande gravadora, ou que nunca teria um disco distribuído no Brasil.

A moda na escola virou colecionar MP3 - eu anotava as que conseguia baixar no fim de semana e comparava com o desempenho dos colegas, cada um se orgulhando dos grandes feitos de garimpagem: "consegui baixar duas da Legião Urbana e uma do Ira". Até que um nerd com PC high tech começou a vender clandestinamente o serviço de gravação de CDs com as músicas escolhidas pelo cliente! Os membros do 4fun, minha extinta banda adolescente que tocava o melhor do pop/rock nacional e internacional, foram fregueses assíduos do colega para decorar, analisar e ensaiar as músicas para pequenas (e inesquecíveis) apresentações.

E quando surgiu a febre dos Pokémon e alguém descobriu que o repetitivo desenho tinha um jogo fenomenal para Gameboy? "Mas quem tinha Gameboy"? Pois é, ninguém! Só que havia uma versão pirata para PC (baixada na internet) que fez muitos de meus colegas gastarem horas e horas evoluindo seus bichinhos e batalhando nos arbustos virtuais. O mesmo aconteceu com Counter-Strike e o primoroso Diablo II.

Fiquei mais velho e me interessei por outros estilos musicais. A curiosidade foi sendo saciada e atiçada com torrents que me mostravam as doideiras dos anos 60, os clássicos da MPB, as velharias do rap e muitas, muitas novidades. Também quis abrir minha cabeça para o cinema e me fascinei por documentários - os filmes de Coutinho, que só pude conhecer pela internet, levaram-me a mais raridades, impossíveis de serem encontradas em locadoras ou compradas. Corri atrás de jogos de Atari e de Master System para sentir o gosto da nostalgia; baixei Fifas e PES (jogos de futebol virtual) que me fizeram dar muita risada em épicas partidas com meus amigos.

Como deu para perceber, eu poderia falar por horas sobre outros conteúdos que baixei na internet e que foram importantes de algum modo na minha vida. Tenho certeza de que o mesmo deve acontecer com o leitor, que também tem noção de que se trata de um tema espinhoso. Quem produz quer receber, mas os estúdios, gravadoras e produtoras metem o preço lá em cima para garfar o lucro num país em que muita gente não tem grana nem para o básico. Mas aí como fica quem produz? Complicado.

Foi só recentemente que o modelo Netflix de acesso a um conteúdo variado (mas também limitado) por um preço bem mais acessível surgiu, recebendo elogios do público e servindo de exemplo para os mercados de jogos (Steam), música (Spotify), quadrinhos, livros e mais. Alguns artistas reclamam da fatia a eles destinada, apesar de ser uma boa plataforma de divulgação.

A pirataria decaiu com o estabelecimento desses serviços de streaming a preços módicos e que oferecem menos riscos que downloads cheios de pop-ups com pornografia; alguns hackers famosos estão anunciando desistência. Será o fim do modelo que ampliou o acesso cultural de um modo nunca visto antes na história desse mundão? Difícil dizer.

Mesmo (no pior dos cenários) que os algoritmos censores decretem o gradual fim, não dá para negar que o repertório cultural de uma enormidade de gente deve muito à amiguinha pirata.

terça-feira, 3 de maio de 2016

24, a camisa maldita no futebol brasileiro

Quando o esporte mais popular do mundo ainda levava menos gente aos "stadiums" que corridas de cavalo, não havia número nas costas das camisas dos jogadores. Devia ser bem difícil diferenciar os praticantes de uma partida de "football", que ostentavam toucas e bigodinhos, "bicudando" as pesadas pelotas de couro de dinossauro (hehe).

Com o passar do tempo, alguém teve a brilhante ideia de usar a álgebra para identificar melhor os esportistas. Numeração de 1 a 11. Funcionava otimamente bem em partidas internacionais e até dava um charme a mais ao espetáculo (parece que, no Brasil, a numeração de camisas se estabeleceu no fim da década de 20 do século XX).

Mesmo com as mudanças frequentes de esquemas táticos, alguns números viraram sinônimos de posições: a camisa 1 é de goleiro, a 2 é típica do lateral direito, a 5 é a do volante, a 9 é a do centroavante, a 10 é a do meia armador e por aí vai. Os reservas usavam os números subsequentes.

Na Copa de 1974, a Holanda, para ser coerente com a troca constante de posição dos jogadores do "Carrossel Holandês", inovou em sua numeração. O goleiro era o número 8, o lateral esquerdo levava a 12 às costas; o craque do time (meia), Cruijff, vestia a 14. No Brasil, o Santos criou sua própria tradição ao estabelecer que o lateral direito deveria usar a 4 e o lateral esquerdo ficaria com a 3 (deixando os números 2 e 6 com os zagueiros).

Convenhamos que esses exemplos eram exceções num mar de times de 1 a 11 que respeitavam a ordem sabe-se-lá-por-quem-inventada das posições/numerações. Pois bem, para tristeza dos saudosistas, o futebol moderno foi chegando com força lá pro fim dos anos 90 e mudou isso (e muitas outras coisas, mas foquemos nisso). Se o craque do time veste a 7, não importa se ele fica no banco em um jogo ou supre a ausência do camisa 10 em outro, ele tem que vestir a mesma camisa para que o número seja identificado com sua imagem e mais gente compre as réplicas de sua camisa em lojas oficiais. Surgia a era das camisas personalizadas.

Eu me lembro de já ter visto jogadores desfilando camisas com números 87, 43, 99, 88, 33, 29, 49 e 85 às costas. E se você der uma pesquisada rápida, é capaz de achar outras camisas nada convencionais. Mas, olha, aqui no Brasil, apesar de existir (em algumas situações obrigatórias), vai ser difícil você encontrar alguma com o número 24.

Aguente, estamos quase chegando no assunto principal

 

Libertadores de 2012. Corinthians, que era campeão do torneio continental apenas no PlayStation, jogava a segunda partida das quartas de final, no Pacaembu lotado, contra o forte Vasco da Gama. Em uma jogada errada de Alessandro, o vascaíno Diego Souza rouba a bola e sai sozinho para marcar o gol que eliminaria o time de Parque São Jorge. O goleiro Cássio faz defesa espetacular e classifica o Corinthians (que, em seguida, marcaria com Paulinho). A equipe acabou vencendo sua primeira Libertadores e, meses depois, o Mundial.

Cássio usava a 24.

"Ah, é por isso que ninguém mais veste a 24 no Corinthians? Para lembrar daquela espetacular defesa"?
Não. A explicação é bem mais bizarra e sem sentido.

No Brasil, por um motivo aleatório, o cara que inventou o popular jogo do bicho (João Baptista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro), classificou o grupo que abarca a quadra estipulada ao veado como o 24º, contendo os números 93, 94, 95 e 96 (entenda as quadras e suas complexidades clicando aqui).

Reza a lenda que, nos anos 20, um policial foi prender homossexuais que passeavam próximos à praça Tiradentes, no Rio de Janeiro (ser homossexual era crime), mas falhou, pois quando seus homens iam capturar os indivíduos, eles corriam "como veados". A história teria ido parar na imprensa e se disseminado Brasil afora.

Esses dois causos fazem com que, no Brasil, haja uma ojeriza ao veado e ao número 24 por parte dos machos alfa, replicada pela cultura machista em geral, já que tais elementos são tidos como claros símbolos homossexuais. Quem nunca presenciou "brincadeiras" relacionadas ao personagem veado Bambi com torcedores do São Paulo (que teriam sido de origem mais rica na época da criação do clube), ou ouviu machões dizendo que fizeram "23 anos e meio, não 24"?

O futebol, o grade reduto machista da sociedade brasileira, não poderia aceitar jogadores ostentando o número gay.

"Então por que Cássio usou a 24 na Libertadores"? O campeonato sul-americano estipula numeração fixa que variava de 1 a 25 (atualmente é de 1 a 30). Como Cássio era terceiro goleiro, acabou ficando com o número maldito. Logo após a ascensão ao posto de titular e a gloriosa conquista, o goleiro fez questão de mudar de 24 para 12. Segundo boa reportagem do Uol, de 2015, apenas dois dos 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro dispunham de jogadores com a camisa 24 no elenco, justamente por disputarem a Libertadores.

O medo de um número


Parece uma coisa boba, não é? É só um número, que é vastamente utilizado por esportistas ao redor do globo em diversas modalidades, mas que, devido à sua ausência no ludopédio brasileiro, mostra a força do machismo e da homofobia no dito esporte. Será que foi o poder gay da camisa 24 que fez com que Cássio defendesse a bola de Diego Souza na Libertadores de 2012? Certamente que não. Será que ao usar essa camisa o macho alfa passa a odiar futebol e, sei lá, começa a fazer coisas socialmente atribuídas a gays (como se homossexuais não pudessem gostar de futebol)? Também não. Então por que esse medo de um 2 e de um 4 juntos?

terça-feira, 26 de abril de 2016

Irmão do Jorel, ditadura militar e heteronormatividade


Imagine-se com oito ou nove anos de idade, acordando cedo no sábado de manhã para assistir, via tevê de tubo sem controle remoto, a algum imperdível desenho no Sábado Animado, do SBT. Um velho mas sempre engraçado Tom & Jerry se alternava com O Fantástico Mundo de Bob; havia também Os Anjinhos e, claro, dava para mudar de canal, esperar outros dias e horários e pegar alguma das reprises de TinTin na Cultura, ver animes na Manchete ou uma ou outra coisinha na Globo (eu adorava o desenho do Super Mario Bros que passava bem cedinho em dias de semana).

Mas se existissem estatísticas sobre a quantidade de episódios de desenhos animados exibidos nas tevês tupiniquins com temáticas como natais com neve, dias de ação de graças, dia das bruxas, brincadeiras com o tal "bundalelê" (em que o indivíduo mostra a bunda como provocação), casas sem portões e mais um monte de outras festas, situações ou hábitos que passam muito longe da realidade de uma criança brasileira, certamente esse índice seria exorbitante. Apenas os programas live-action da Cultura, como Rá-Tim-Bum, Cocoricó, e Castelo diminuiriam essa "goleada".

Não acho que os gringos são estúpidos e só produzem lixo enlatado - considero inclusive que existe muitíssima coisa boa -, mas essa grande lacuna na animação brasileira é preenchida pelas obras estrangeiras... E isso tem impacto no nosso autorreconhecimento, tanto em termos culturais, quanto nos problemas pelos quais passamos como habitantes do país. Bom, isso acontecia na minha época, já que toda criança ficava horas e horas em frente à tevê. Talvez hoje em dia, com internet e smartphones, a coisa seja um pouco diferente. Mesmo assim, crianças gostam de desenhos, independentemente da mídia que os transmita. Seja via tevê de tela plana ou espertofone baratinho,"Irmão do Jorel", criado por Juliano Enrico, e exibido e produzido pelo Cartoon Network, em parceria com o Estúdio Copa, é um contraponto ao que está estabelecido, pois é um raro seriado de animação brasileiro que, ainda por cima, bota o dedo em algumas feridas, com foco no humor e dispõe de fantástica qualidade técnica.

Bebendo na fonte de desenhos mais recentes do próprio canal estadunidense que misturam a estética da fofura com muitos elementos nonsense (vide Flapjack e Hora de Aventura), a série conta a história de Irmão do Jorel, um molequinho mirrado que é irmão mais novo de uma lenda: o adolescente Jorel, com seus longos cabelos esvoaçantes que arrebatam corações e a admiração de todos na escola Pônei Encantado. A popularidade de Jorel é tamanha que ninguém sabe ao certo o nome de seu irmão mais novo. A família, tipicamente de classe média brasileira, tem duas avós, um irmão do meio, o pai e a mãe, além dos dois já citados - você pode ver mais detalhes sobre cada um dos personagens aqui.

Eu poderia falar sobre coisas muito legais e engraçadas que são tema central ou pano de fundo dos 26 episódios viajados e emocionantes já lançados até o momento (a segunda temporada está em produção), como festa junina, anel apito, filtro de barro, figurinhas, caneta de 250 cores, fixação por um herói tosco que mistura Steven Seagal com Sidney Magal (virando Steve Magal), os incríveis Latenagers (uma banda psicodélica do pai da família Jorel, estilo Secos e Molhados) e a adoração das crianças pelo anime Microwave Warriors (referência clara a Cavaleiros do Zodíaco), mas vou focar em duas questões. Sigam-me os bons:

Relação com a memória da ditadura militar

 

No Brasil, apesar de Bolsonaro ter bizarramente louvado o coronel torturador Brilhante Ustra na votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, e de um jornal de grande circulação já ter falado em ditabranda ao se referir ao período da ditadura militar no país, tivemos um regime que calou a população por décadas, torturou e  matou centenas de pessoas. É algo importante e que deixou marcas na geração que presenciou o processo, tendo seus ecos sentidos até hoje. Em "Irmão do Jorel", Seu Edson, o pai da família, é um ex-militante revolucionário, que tentou lutar contra a ditadura fazendo uma peça infantil chamada "Um Urso Numa Casquinha de Noz" (risos).

Quem estava no poder durante esse período, no universo da animação? Os palhaços.

Liderados por Hambozo (uma mistura de Rambo com Bozo?), os palhaços são proibidos de sorrirem ou de se divertirem enquanto contam piadas. Apesar da maquiagem peculiar da profissão, utilizam trajes militares e precisam obedecer a uma rígida hierarquia, mostrada no episódio 16, quando Irmão do Jorel é recrutado para se tornar palhaço profissional. Todo o tipo de força repressora da animação é liderada por Hambozo, inclusive a polícia (menção à Polícia Militar, que é herança da ditadura?). Tortas e flores d'água são as armas dos tristes palhaços, que querem levar uma alegria burocrática e controlada à população.

Questionamento da heteronormatividade

 

No episódio 25, Irmão do Jorel e sua melhor amiga Lara se interessam em participar de uma competição de roller derby (uma patinação artística no gelo sem gelo e sem arte, segundo a personagem Samantha). Por ser homem, Irmão do Jorel é proibido de integrar o time das "Trituradoras de Sonhos Mortíferos". Mesmo assim, o garoto se veste de mulher e entra na vaga de Lara, que havia sido expulsa pelo juiz (também um palhaço) no meio da disputa, fazendo sua equipe vencer a grande competição. Todos no gigantesco estádio ficam estupefatos quando se anuncia a fraude - vozes se levantam indignadas com o fato de Irmão do Jorel estar usando saias; mesmo assim, o moleque ergue novamente o troféu e um anônimo na plateia grita: "Não importa! É isso aí, cara!" contagiando a arena e levando o pequeno à glória.

Ao longo do episódio, Irmão do Jorel tenta, constrangido, esquecer dos patins e jogar futebol, que é coisa de macho. Antes, quando Lara diz que ele é frangote por não querer passear de bicicleta longe de casa, ele pergunta se ela quis dizer que ele é "mulherzinha". É então que Lara dá uma grande lição:



Imagem: Cartoon Network Brasil

Em seguida, a conversa se segue e Lara argumenta que é possível um menino não gostar de jogar futebol e uma menina ser apaixonada pelo esporte bretão.

Dedo na ferida

 

Para além de toda ambientação em território brasileiro, com objetos e expressões mais comuns no dia a dia de uma parcela das crianças do país (lembremos que a produção é baseada no universo de uma família de classe média), o seriado se torna extremamente inovador ao tocar em temas que são tabu, ainda mais por se tratar de uma animação infantil.

O Brasil tem dois recordes internacionais negativos: é o país que tem uma das polícias mais assassinas do mundo e é o campeão de assassinatos de homossexuais. "Irmão do Jorel", ao abordar esses temas, pode facilitar a conversa de crianças com pais, professores e colegas sobre a ditadura militar e a herança deixada por esse doloroso processo (como a PM); e sobre preconceito, ódio e bullying que vêm da homofobia tão presente em nossa cultura.

Não estou pintando o desenho de vermelho ou dizendo que é a coisa mais progressista do mundo (tem gente que vai encontrar reforços de estereótipos onde outros verão apenas ironia, em certos episódios), mas é uma produção bem divertida, que ocupa essa lacuna de séries animadas sobre o Brasil e que acertou absurdamente em tocar em temas tão polêmicos.

Se você der uma chance a "Irmão do Jorel", capaz de se viciar mais que seus filhos pequenos.