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terça-feira, 10 de maio de 2016
O que seria de nós sem a pirataria digital?
Minha geração, que passou a infância nos anos 90 (com bermudas de surf e quadriculadas), viu o nascimento para o grande público dos fantásticos computadores pessoais. Junto com esses trambolhos mágicos, ouviu os primeiros ruídos da internet discada e saboreou o "surround" do kit multimídia (que eram duas caixinhas de som estridentes). Ah, a tecnologia...
Antes disso e até a internet dar uma melhorada, consumíamos fitas cassete piratas, já que a grana era curta para comprar CDs (esses últimos custavam 20 mangos e eram os melhores presentes para festas com "amigo secreto"). Mesmo assim, a variedade era pequena e a qualidade, baixa.
Quando surgiu o primeiro Napster (hoje um Spotify genérico), percebi que não precisaria do rádio para ouvir uma música na hora em que eu quisesse, e nem teria que comprar um disco inteiro por causa de uma música; abria-se até a possibilidade de conhecer um artista que talvez nem tivesse lançado uma canção em CD, ou que jamais seria contratado por uma grande gravadora, ou que nunca teria um disco distribuído no Brasil.
A moda na escola virou colecionar MP3 - eu anotava as que conseguia baixar no fim de semana e comparava com o desempenho dos colegas, cada um se orgulhando dos grandes feitos de garimpagem: "consegui baixar duas da Legião Urbana e uma do Ira". Até que um nerd com PC high tech começou a vender clandestinamente o serviço de gravação de CDs com as músicas escolhidas pelo cliente! Os membros do 4fun, minha extinta banda adolescente que tocava o melhor do pop/rock nacional e internacional, foram fregueses assíduos do colega para decorar, analisar e ensaiar as músicas para pequenas (e inesquecíveis) apresentações.
E quando surgiu a febre dos Pokémon e alguém descobriu que o repetitivo desenho tinha um jogo fenomenal para Gameboy? "Mas quem tinha Gameboy"? Pois é, ninguém! Só que havia uma versão pirata para PC (baixada na internet) que fez muitos de meus colegas gastarem horas e horas evoluindo seus bichinhos e batalhando nos arbustos virtuais. O mesmo aconteceu com Counter-Strike e o primoroso Diablo II.
Fiquei mais velho e me interessei por outros estilos musicais. A curiosidade foi sendo saciada e atiçada com torrents que me mostravam as doideiras dos anos 60, os clássicos da MPB, as velharias do rap e muitas, muitas novidades. Também quis abrir minha cabeça para o cinema e me fascinei por documentários - os filmes de Coutinho, que só pude conhecer pela internet, levaram-me a mais raridades, impossíveis de serem encontradas em locadoras ou compradas. Corri atrás de jogos de Atari e de Master System para sentir o gosto da nostalgia; baixei Fifas e PES (jogos de futebol virtual) que me fizeram dar muita risada em épicas partidas com meus amigos.
Como deu para perceber, eu poderia falar por horas sobre outros conteúdos que baixei na internet e que foram importantes de algum modo na minha vida. Tenho certeza de que o mesmo deve acontecer com o leitor, que também tem noção de que se trata de um tema espinhoso. Quem produz quer receber, mas os estúdios, gravadoras e produtoras metem o preço lá em cima para garfar o lucro num país em que muita gente não tem grana nem para o básico. Mas aí como fica quem produz? Complicado.
Foi só recentemente que o modelo Netflix de acesso a um conteúdo variado (mas também limitado) por um preço bem mais acessível surgiu, recebendo elogios do público e servindo de exemplo para os mercados de jogos (Steam), música (Spotify), quadrinhos, livros e mais. Alguns artistas reclamam da fatia a eles destinada, apesar de ser uma boa plataforma de divulgação.
A pirataria decaiu com o estabelecimento desses serviços de streaming a preços módicos e que oferecem menos riscos que downloads cheios de pop-ups com pornografia; alguns hackers famosos estão anunciando desistência. Será o fim do modelo que ampliou o acesso cultural de um modo nunca visto antes na história desse mundão? Difícil dizer.
Mesmo (no pior dos cenários) que os algoritmos censores decretem o gradual fim, não dá para negar que o repertório cultural de uma enormidade de gente deve muito à amiguinha pirata.