Sobre amor romântico e a chatice das canções do rádio

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Sobre amor romântico e a chatice das canções do rádio



 Se fosse possível compilar e classificar todas as canções (aquelas músicas produzidas com base em uma letra cantada por voz humana e acompanhadas por instrumentos musicais) já feitas, eu chutaria, baseado no meu preciso achismo, que mais de 75% delas têm um único tema: o amor.

"Será que tinha tanta música de amor, sei lá... Na Europa do século X? Ou nas organizações sociais indígenas do Brasil antes de 1500"? Não, só que como a produção de canções no último século cresceu exponencialmente, muito influenciada pelo individualismo ocidental e pelos mercados europeu e estadunidense, mantenho o meu chute aí de cima. Mas voltemos ao ponto central da questão...

Ahhhhh, o amor. Esse sentimento tão inexplicável, mágico, citado por zilhões de poetas, "impossível" de ser definido. Qual é o principal ensinamento que eles nos passa? Um bem assustador: não há qualquer possibilidade de ser feliz sem o amor. Tá todo mundo atrás de um xodó. Como diria Arnaldo Antunes no álbum Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas, dos Titãs, "uma pessoa boa quer amor, uma pessoa má quer amor, todo mundo quer amor de verdade".



A paixão acelera o coração, faz tremer as pernas, enrubesce. O amor dá saudades, é companheiro e aconchegante. Mas todo mundo que teve uma relação forte com outra pessoa já se perguntou se realmente a amou... E mesmo quando a resposta foi positiva, refez a questão depois que o sentimento acabou, às vezes mudando a resposta. Depois de uma desilusão ou quando a rotina transforma o sexo em algo mais chato do que assistir televisão, muita gente se pergunta se o amor, em geral, existe.

Li um texto curto e bem legal da Laura Pires sobre o tema, publicado em 2014. Com base em seus estudos de mestrado sobre o discurso do amor romântico, Pires o desconstrói e incentiva o leitor a pensar que o amor nada mais é do que uma relação de amizade com respeito intenso em que os indivíduos querem passar algum tempo (não necessariamente todo o tempo) juntos, algo muito menos mágico e indescritível do que usualmente se pensa. Nessa linha, ela inclusive fala das possibilidades de relacionamentos abertos e poliamorosos, menos baseados em posse (mesmo estando longe de serem perfeitos, em minha opinião).

Só que o discurso do amor romântico que permeia várias esferas da vida faz acreditarmos que o destino reserva a pessoa perfeita que irá dividir a vida toda conosco com a mesma intensidade, após décadas de convivência, do dia do primeiro beijo. Há possessividade, obrigações e negações de vontades. Promete-se o amor eterno diante do padre ou do juiz, sem a convicção do cumprimento. E não por falta de "amor", mas simplesmente porque nós e as relações que nutrimos mudam com o passar do tempo - e não há nada de errado com isso.

A história se repete, é claro, nas letras de canções radiofônicas (ou emitidas via streaming, como fica cada vez mais comum). Temos aí a profusão de músicas de amor cheias de clichês românticos difíceis de engolir. "Você é meu sol", "Amor eterno", "Sempre vou te esperar" e outras frases parecidas, em diversos idiomas, surgem todos os dias e podem ser ouvidas em qualquer lista de Spotify, Deezer ou nas rádios FM.

Em algumas vezes a melodia agrada e saímos repetindo a letra como se a mensagem transmitida fosse neutra, já que falar de amor é tão comum e genérico que pouca gente presta atenção. É uma muleta, é como falar de um ponto em que não há discordância. Não que alguns (apenas alguns) autores de canções não estejam realmente apaixonados ou amando (por mais questionável que a definição seja) quando produzem suas obras, mas é mais fácil falar de um tema tão amplamente aceito do que de toda a maluquice que existe no mundo para além das aflições de nossos corações, ou do que questionar o amor romântico, desconstrui-lo e duvidar da ideia de que o amor é tão essencial assim para todos.

Uma exceção que, junto com o texto da Laura, me fez pensar em tudo isso foi a música "Nós Dois", cantada por Karina Zeviani no álbum "Saudade", do Thievery Corporation. Nela, a interlocutora está nutrindo forte sentimento por uma pessoa. Sonhos são construídos em conjunto, mas em vez da jura de amor eterno, o que se ouve é uma promessa de "curtir enquanto a vida nos deixar", "enquanto for bom pra você e para mim", seguindo o conselho de Vinícius em Soneto da Fidelidade: que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.



O amor, ou essa relação de amizade com respeito e compartilhamento do tempo, não precisa ser eterno para valer a pena ou dar certo. Precisa apenas existir. E as canções com essa temática, quando sinceras, mesmo não tendo tanta chance de sucesso, têm mais possibilidade de tocar as pessoas.