Grito de "porco" no tiro de meta: usando o amor do torcedor para combater a homofobia

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Grito de "porco" no tiro de meta: usando o amor do torcedor para combater a homofobia



 Quem foi a primeira pessoa a gastar seu tempo livre para fazer uma flâmula colorida e agitá-la na arquibancada para incentivar seu time de football? Quando surgiu o bandeirão? Como foi composta a primeiríssima música original cantada em uníssono num estádio lotado? Quem foi que teve a ideia de vender pipoca e churrasquinho para ganhar um troco na saída do jogo?

Essa atmosfera riquíssima que envolve uma partida de futebol in loco (e que as novas arenas brasileiras tentam amenizar e a Polícia Militar de São Paulo luta para proibir - palavra adorada pela corporação) está cheia de contribuições de anônimos; é uma eterna construção coletiva. Algumas atitudes surgem espontaneamente em tudo quanto é lugar, outras são tradições locais e ainda há as que se espalham como pragas com o mínimo contato entre torcidas, seja em torneios continentais, mundiais ou até via televisão.

Certos atos não são fortes o suficiente para resistirem ao tempo, outros duram até os dias atuais e fazem parte do ritual futebolístico.

Há pouco tempo os estádios brasileiros apresentaram uma péssima novidade, dessas de rápida viralização: o grito de "bicha". Quando o goleiro do time adversário se prepara para bater um tiro de meta, os torcedores locais gritam "eeeeeeeeeeeeeeeeee..." num crescente que só é interrompido quando o arqueiro chuta a bola para o campo adversário e os presentes berram: "bichaaaaa".

A origem?


O grito ganhou força em terras tupiniquins em 2014, na Copa do Mundo (sim, mais um "legado da Copa"). Na partida entre Brasil e México, os americanos do norte abusavam do ritual descrito no parágrafo anterior, só que em vez de "bicha", gritavam "puto" - que tem o mesmo significado: homossexual. Para retrucar o que seria um xingamento, os brasileiros adaptaram a palavra: "bicha". Pouco tempo após o término do certame internacional, torcedores de vários times do país se sentiam familiarizados com a "provocação".

Segundo a infalível internet, o grito é oriundo do México e está ligado ao goleiro Oswaldo Sanchéz, mas há diferentes versões da história - a que me pareceu mais aceitável foi a seguinte: Sanchéz jogava no Atlas, de Guadalajara, e se transferiu para o América; anos mais tarde, em 1999, voltou à cidade natal para atuar no Chivas, que tem forte rivalidade com o Atlas. O arqueiro teria dito que era agradecido ao Atlas, mas que seu coração sempre pertenceu ao Chivas. Os torcedores do rojinegros expressaram seu ódio com relação ao ex-jogador por meio do grito de "puto" nos tiros de meta de um clássico tapatío, como é conhecido o jogo entre as duas agremiações de Guadalajara, em 2003.

O ato se alastrou por todas as torcidas mexicanas e chegou à seleção nacional. Os berros foram ouvidos nos jogos do México nas Copas do Mundo de 2006 e 2010. Foi apenas o contato mais pessoal, vindo com a Copa de 2014, que fez o ritual homofóbico dar as caras em jogos de times da primeira divisão do Brasil.

Uma eficaz e perspicaz iniciativa

 

Após diversas ameaças, a Fifa, entidade máxima do futebol, multou 11 federações por comportamento homofóbico de suas torcidas, incluindo as do Brasil e do México em outubro de 2016, em jogos válidos para eliminatórias do torneio mundial de 2018. No país da América do Norte, a federação nacional chegou a lançar uma campanha para evitar tal comportamento por parte da hinchada, aparentemente com pouca adesão.

O Brasil é um país em que o futebol, tratado como "reduto do macho", é uma das válvulas de escape mais fortes para expressar o machismo e a homofobia (até por isso a camisa 24 é informalmente banida por estas bandas) e tudo o que não precisávamos era de mais uma tradição idiota. Mas já que ela se estabeleceu, como combatê-la?

Um grupo de torcedores do Palmeiras autodenominado M20-9 lançou uma campanha virtual inspirada em games dos anos 90 para pedir que a torcida troque o "bicha" pelo "porco" nos tiros de meta do goleiro adversário. Assim, em vez de alastrar a homofobia, o palmeirense exalta o mascote de seu próprio time.

Confira aqui e confira o vídeo na íntegra (não consegui embedar direto do Facebook).

A campanha não faz com que o homofóbico questione sua "brincadeira inofensiva" num dos países que mais mata LGBTTI no mundo, pois ela não é um combate frontal ao preconceito - apenas insta o apaixonado pelo time a fazer a "pressão do jeito certo"; mas é extremamente perspicaz ao usar o sentimento mais valioso para um torcedor (o amor ao time) como arma para jogar esse nova tradição para longe. É melhor combater a homofobia sem esse grito estúpido de "bicha" do que com ele...

E o que aconteceu na partida do Palmeiras contra o Sport? O negócio deu certo. Eu fui ao jogo e pude ouvir os gritos de "porco" na hora do tiro de meta do goleiro Magrão. Não houve muitos tiros de meta, é verdade, e não sei se o setor do Allianz Parque em que eu estava tinha mais gente disposta a abraçar a campanha do que os demais, mas o fato é que funcionou.

Se analisarmos em termos táticos, talvez uma campanha mais combativa e que colocasse o dedo na ferida, mostrando como o torcedor que grita "bicha" está sendo escroto e perpetuando violências não fosse tão eficaz com a grande quantidade de homofóbicos e machistas que é maioria em estádios e que não tem a cabeça aberta para se questionar. Dessa forma, grito poderia simplesmente perdurar por anos a fio no Palestra.

A luta contra a irracionalidade da homofobia é longa e dura, ainda mais no futebol, mas esse pequeno ato, com suas limitações, é muito importante e precisa se tornar uma marca registrada não apenas do Palmeiras, mas de todas as torcidas do Brasil.