O que Macunaíma tem a ver com Avatar?

terça-feira, 24 de maio de 2016

O que Macunaíma tem a ver com Avatar?



Se existia um livro maldito na escola quando eu era adolescente, era Macunaíma, o romance de 1928, de Mário de Andrade. Um clássico da literatura brasileira? Sim, mas odiado por todos os alunos que ousavam ler o original em vez dos resumos mastigados das apostilas pré-vestibular.

"Uma história sem pé nem cabeça", diziam os colegas. "O cara vai de São Paulo ao Nordeste num minuto e a pé; fica falando um monte de nome de fruta desconhecida, de passarinho; ele se transforma em vários bichos e depois volta a ser gente; o livro esquece de contar a história principal. Não faz sentido!"

Com dó da minha cara de pavor em pensar sobre encarar o mar de desconstrução da narrativa tradicional que Macunaíma traria, minha mãe releu a obra para me contar a história antes do vestibular. E ela, que também tinha um pé atrás com o herói e suas aventuras, gostou bastante da leitura. Não dei bola.

Já na faculdade, abrindo a cabeça para muita coisa, decidi que era o momento. Peguei a edição de 1972 com capa azul e folhas razoavelmente amareladas e fui pra cima. Ao fim da rápida leitura, confirmei que tudo aquilo que meus colegas diziam era verdade. Eles só erraram numa coisa: o livro não era chato, era incrível!

A velocidade da narrativa, as lendas indígenas, os ditos populares, o humor, o urbano, a busca pela muiraquitã  (que é muitas vezes esquecida enquanto ocorrem as aventuras do herói e de seus irmãos), a São Paulo que vira metrópole com fábricas, ingleses e trabalhadores, os estrangeiros, a crítica ao português eloquente na Carta Pras Icamiabas (Michel Temer podia dar uma lida nesse romance, inclusive), sem esquecer da já citada desconstrução da narrativa tradicional... É fácil pensar em elementos marcantes do livro mesmo quando puxamos rapidamente pela memória. Mas, antes de tentar extrair um aspecto que faz esse livro tão legal pra mim...

... Façamos, sem preconceito, uma breve análise de um desenho animado pop infantojuvenil


Avatar: A Lenda de Aang não é o mesmo Avatar de James Cameron, que tem aqueles bichos grandes e azuis. Trata-se de um história passada por volta de 1800 num mundo imaginário, criado por Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, e que é dividido em quatro civilizações: a Nação do Fogo, as duas Tribos da Água (do norte e do sul), o Reino da Terra e os Nômades do Ar. O elemento guia de cada uma delas costuma moldar a personalidade dos habitantes dos "países" e também pode ser "dobrado" ou, na tradução adaptada ao português, dominado. Assim, quem nasce na Nação do Fogo, com treino e sorte, desenvolve a capacidade de dominar o fogo, de modo a gerá-lo com a palma da mão. Dobradores de terra podem abrir fendas no chão e mover pedras; já os que dominam a água moldam grandes ondas; os dobradores de ar são capazes de criar ventanias e furacões. De tempos em tempos, nasce o Avatar, o único humano que pode dominar, ao mesmo tempo, todos os elementos para ajudar a recolocar o mundo em equilíbrio.

"Ok, isso não é exatamente original", você pode dizer. É verdade. Avatar, à primeira vista, parece mais um desenho bobinho, daqueles em que o bem sempre vence o mal... Mas não é bem assim. O ponto de vista do mal é levado em conta, contextualizado; e a produção também faz o espectador refletir, sem moralismos, sobre coisas complexas. Em certos episódios, levanta-se a questão de que roubar ou mentir, dependendo da situação, pode ser algo necessário, por exemplo. O anime faz apologia à reflexão e à paciência, algo cada vez mais fora da realidade de muitas crianças. Sem contar a evolução dos personagens, muito carismáticos, o protagonismo das mulheres (a continuação da série teve uma garota como personagem principal), e os roteiros, que te deixam com vontade de assistir a vários episódios em sequência.

O pano de fundo que une todas as sagas do desenho de forma tão especial é a cultura oriental, como este artigo, de David Ehrlich, demonstra muito bem. "Os nomes, os vestuários, a arquitetura, a escrita, os estilos de luta, a política, até mesmo a animação, tudo foi concebido para se assemelhar a aspectos culturais asiáticos, principalmente chineses, japoneses e indianos, entre outros". É uma apropriação por parte dos dois autores estadunidenses de vários elementos orientais, de modo a simplificá-los para caberem num desenho animado infantil - o que faz com que o público não apenas se divirta, mas aprenda um pouco sobre uma visão cultural não dominante.

Em Macunaíma também há algo parecido. Sem pretensão de criar uma enciclopédia da cultura brasileira, Mário de Andrade fez um livro que brinca com toda essa mistureba tupiniquim, lusoitaliana, afrobrasileira e capira, contando uma história com um pano de fundo capaz de mostrar um pouco dos índices de nossa cultura. Do ditado que ninguém sabe de onde veio (mas que todo mundo tem na ponta da língua) à brincadeira com a "preguiça" que os europeus imputaram aos índios brasileiros, Macunaíma dá pistas sobre a visão do autor a respeito da constituição cultural do brasileiro, tão influenciada pelos indígenas, mas cada vez mais engolida pelo modo ocidental de viver.

Avatar também tem esse caldo "indicial", que pode ser superficial por um lado, mas que permite ao interessado conhecer certos aspectos de uma cultura que foge do padrão ocidental. Yin & yiang, meditação, vegetarianismo e kung fu são exemplos que aparecem no pano de fundo do desenho.

Ao ver os blocos de mistura cultural que questionam a visão ocidental padrão em um livro brasileiro de 1928 e em um desenho animado estadunidense de 2005, por mais diferentes que possam ser, e por elas terem a capacidade de despertar a curiosidade para outras visões de mundo, resolvi escrever este texto e fazer o desenho lá de cima, que junta, de forma um tanto inusitada, é verdade, ícones dos dois sincretismos: um Macunaíma preguiçoso em pleno estado avatar.