Com o passar do tempo, alguém teve a brilhante ideia de usar a álgebra para identificar melhor os esportistas. Numeração de 1 a 11. Funcionava otimamente bem em partidas internacionais e até dava um charme a mais ao espetáculo (parece que, no Brasil, a numeração de camisas se estabeleceu no fim da década de 20 do século XX).
Mesmo com as mudanças frequentes de esquemas táticos, alguns números viraram sinônimos de posições: a camisa 1 é de goleiro, a 2 é típica do lateral direito, a 5 é a do volante, a 9 é a do centroavante, a 10 é a do meia armador e por aí vai. Os reservas usavam os números subsequentes.
Na Copa de 1974, a Holanda, para ser coerente com a troca constante de posição dos jogadores do "Carrossel Holandês", inovou em sua numeração. O goleiro era o número 8, o lateral esquerdo levava a 12 às costas; o craque do time (meia), Cruijff, vestia a 14. No Brasil, o Santos criou sua própria tradição ao estabelecer que o lateral direito deveria usar a 4 e o lateral esquerdo ficaria com a 3 (deixando os números 2 e 6 com os zagueiros).
Convenhamos que esses exemplos eram exceções num mar de times de 1 a 11 que respeitavam a ordem sabe-se-lá-por-quem-inventada das posições/numerações. Pois bem, para tristeza dos saudosistas, o futebol moderno foi chegando com força lá pro fim dos anos 90 e mudou isso (e muitas outras coisas, mas foquemos nisso). Se o craque do time veste a 7, não importa se ele fica no banco em um jogo ou supre a ausência do camisa 10 em outro, ele tem que vestir a mesma camisa para que o número seja identificado com sua imagem e mais gente compre as réplicas de sua camisa em lojas oficiais. Surgia a era das camisas personalizadas.
Eu me lembro de já ter visto jogadores desfilando camisas com números 87, 43, 99, 88, 33, 29, 49 e 85 às costas. E se você der uma pesquisada rápida, é capaz de achar outras camisas nada convencionais. Mas, olha, aqui no Brasil, apesar de existir (em algumas situações obrigatórias), vai ser difícil você encontrar alguma com o número 24.
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Libertadores de 2012. Corinthians, que era campeão do torneio continental apenas no PlayStation, jogava a segunda partida das quartas de final, no Pacaembu lotado, contra o forte Vasco da Gama. Em uma jogada errada de Alessandro, o vascaíno Diego Souza rouba a bola e sai sozinho para marcar o gol que eliminaria o time de Parque São Jorge. O goleiro Cássio faz defesa espetacular e classifica o Corinthians (que, em seguida, marcaria com Paulinho). A equipe acabou vencendo sua primeira Libertadores e, meses depois, o Mundial.
Cássio usava a 24.
"Ah, é por isso que ninguém mais veste a 24 no Corinthians? Para lembrar daquela espetacular defesa"?
Não. A explicação é bem mais bizarra e sem sentido.
No Brasil, por um motivo aleatório, o cara que inventou o popular jogo do bicho (João Baptista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro), classificou o grupo que abarca a quadra estipulada ao veado como o 24º, contendo os números 93, 94, 95 e 96 (entenda as quadras e suas complexidades clicando aqui).
Reza a lenda que, nos anos 20, um policial foi prender homossexuais que passeavam próximos à praça Tiradentes, no Rio de Janeiro (ser homossexual era crime), mas falhou, pois quando seus homens iam capturar os indivíduos, eles corriam "como veados". A história teria ido parar na imprensa e se disseminado Brasil afora.
Esses dois causos fazem com que, no Brasil, haja uma ojeriza ao veado e ao número 24 por parte dos machos alfa, replicada pela cultura machista em geral, já que tais elementos são tidos como claros símbolos homossexuais. Quem nunca presenciou "brincadeiras" relacionadas ao personagem veado Bambi com torcedores do São Paulo (que teriam sido de origem mais rica na época da criação do clube), ou ouviu machões dizendo que fizeram "23 anos e meio, não 24"?
O futebol, o grade reduto machista da sociedade brasileira, não poderia aceitar jogadores ostentando o número gay.
"Então por que Cássio usou a 24 na Libertadores"? O campeonato sul-americano estipula numeração fixa que variava de 1 a 25 (atualmente é de 1 a 30). Como Cássio era terceiro goleiro, acabou ficando com o número maldito. Logo após a ascensão ao posto de titular e a gloriosa conquista, o goleiro fez questão de mudar de 24 para 12. Segundo boa reportagem do Uol, de 2015, apenas dois dos 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro dispunham de jogadores com a camisa 24 no elenco, justamente por disputarem a Libertadores.
O medo de um número
Parece uma coisa boba, não é? É só um número, que é vastamente utilizado por esportistas ao redor do globo em diversas modalidades, mas que, devido à sua ausência no ludopédio brasileiro, mostra a força do machismo e da homofobia no dito esporte. Será que foi o poder gay da camisa 24 que fez com que Cássio defendesse a bola de Diego Souza na Libertadores de 2012? Certamente que não. Será que ao usar essa camisa o macho alfa passa a odiar futebol e, sei lá, começa a fazer coisas socialmente atribuídas a gays (como se homossexuais não pudessem gostar de futebol)? Também não. Então por que esse medo de um 2 e de um 4 juntos?