Seis e meia da tarde, em uma Quinta vérspera de feriado prolongado. Chego na rodoviária de Bauru. Em companhia de um amigo, aproveito que estou adiantado no horário, e passo antes na banca de jornais. Dou uma olhada em algumas revistas, e acabo comprando o Lance. Saio da banca, e vou pra plataforma de meu ônibus, pronto para voltar a minha cidade. Até aí, tudo como de costume.
Eis então que acontece uma das cenas mais chocantes de minha tranquila classe mediana vida.
A plataforma é a de número 12, estamos eu e meu amigo, conversando e esperando. A véspera de feriado é a razão do movimento maior que o normal na rodoviária. A duas plataformas de distância, dois homens chamam a atenção. Um deles, negro, visivelmente alcolizado, sem os mínimos reflexos para sequer ficar em pé, tem o braço puxado, quase que arrancado, pelo outro, de pele morena, que apresenta um comportamento assustadoramente alterado.
"Levanta, caralho, levanta", berrava o de comportamento assutadoramente alterado, enquanto caía, ao tentar levantar o visivelmente alcolizado.
Não levantou.
"Voce é do UIPA (presídio de Bauru), né? É do PCC?", gritou ainda mais alto, sem obter, obviamente, nenhuma resposta. A seguir, embuído de uma agressividade fora do comum, com a raiva estampada no rosto, o homem em pé, se inclina, fecha a mão e acerta um soco direto e bem firme na cara do homem estirado.
Eu, que até então achava que os dois eram amigos, soltei um berro, assim como outros que testemunhavam a cena. Mas o pior estava por vir.
Não contente apenas com o soco, que provavelmente quebrou o maxilar acertado, o homem com raiva engatilha a perna, e dá um, dois, três chutes diretamente na cabeça do homem àquela altura desacordado. Três chutes que jamais sairão da minha memória, provavelmente porque não os vi. Quando da iminência do primeiro, virei de costas - a cena era insuportavelmente pesada para meus olhos. E a cada grito de apreensão daqueles que observavam o ato de covardia, senti o reflexo dos chutes rasgando-me brios adentro.
A poça de sangue que se formou ao redor da cabeça do agredido, a fuga do agressor entre as moitas e a escuridão, o homem com a camisa do são paulo que chegou correndo, indignado, gritando "como ninguém fez nada? o que é isso? queria ver se fosse parente de alguém?", meu desespero em chamar o resgate que não chamei e que outro chamou, a indiferença dos passageiros, dos funcionários, dos motoristas, que passavam pelo corpo, adentravam seus ônibus, recebiam as passagens, com o mesmo ar de naturalidade de qualquer outro dia, a chegada da polícia, o resgate que não chegava, o agressor voltando à cena, provavelmente drogado pra fazer aquela burrada, e sendo preso após denunciado, o clima de revolta e linchamento, aquele "esse já tá morto" da policial pro meu "não morreu não, ainda tá respirando", os policiais se preparando pra levar o corpo ao hospital, "não mexe na cabeça não, é melhor imobilizar antes", "voce quer que ele morra aqui então, moleque? vaza daqui", a chegada do resgate segundos depois, meu ônibus, entro nele, de onde vejo o agredido, imobilizado e já dentro do resgate.
Dentro do ônibus, ainda ouço de uma menina "Ih, aquele deve tá morto", em tom de uma indiferença irritante, como se o suposto morto tivesse o mesmo valor que um saco de batata frita. "Não morreu não, ele ainda tava respirando", respondi pela segunda vez na noite, com uma mistura de lamento e raiva pela aquela frase. E aí que um colega meu, que pegara o mesmo ônibus, em tom de deboche, me manda:
"Relaxa. Bica em cabeça de bêbado não mata não", para logo depois abrir seu laptop e passar a viagem toda, trânquilo, assistindo ao dvd que trouxera.
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O agressor é Vagner Caetano, 22 anos. O agredido é Antônio Carlos da Silva, 23 anos. Ambos receberam o benefício de indulto, creio eu, apenas durante a Páscoa, para visitar seus familiares.
Para alguém como eu, que cresceu blindado das mazelas da sociedade brasileira, que viveu sempre no eixo do centro da cidade, vendo a verdadeira violência apenas na TV e nos jornais, e a sentindo de maneira bem tímida apenas nos relatos dos que foram assaltados ou dos que conhecem algum pai de família morto em um assalto, o acontecimento de 05 de abril de 2007 me suscitou ínumeros pensamentos que me acompanharam durante as 2 horas e meia de viagem de Bauru a Rio Claro, e que ainda me acompanham. Destes, pude fazer algumas constatações:
O Individualismo da sociedade - foi triste, muito triste de ver a indiferença dos vários que ali estavam em relação ao homem que teve o crânio estraçalhado. As pessoas passavam, olhavam o corpo com olhar de curiosidade, e entravam em seus ônibus de maneira supernatural. Ninguém estava muito aí, salvo algumas exceções. Apesar de injustificado, o fato de ninguém ter ousado deter o agressor se compreende de alguma maneira pelo sentimento de medo e por todos terem sido pegos de surpresa. Mas a unica explicação para a indiferença das pessoas no pós-crime é essa: vivemos em um mundo onde o lema é "cada um por si, Deus por todos, foda-se". Sei que não é nenhuma novidade, mas nunca é demais lembrar.
Cristianismo? - as pessoas voltavam para as suas cidades em razão do fim de semana da Páscoa, datas que relembram a crucificação e ressureição de Jesus Cristo. Religiosismo à parte, a filosofia de Jesus Cristo era a da caridade, do espírito coletivo, do amor incondicional a qualquer um, independente de raça, credo e classe social. Ao antagonismo do individualismo de hoje em dia e da idéia por trás do cristianismo, o acontecimento daquela quinta traz uma grande conclusão: a grande maioria dos que se dizem cristão é de fachada.
Minha covardia - Só de pensar de que eu poderia ter presenciado um assassinato de uma pessoa indefesa, sem ter feito absolutamente nada, quando perfeitamente o poderia, já crava nos meus brios o sentimento de Culpa. Fui covarde quando não podia.
O lado positivo - "João, a violência que você vê nos jornais e na TV realmente existe".
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PS1: No site do Jornal da Cidade, de Bauru, há uma notícia sobre o acontecimento, que diz que tanto o agressor como o agredido foram liberados durante a noite (um, da delegacia, o outro, do hospital). Logo, não houve morte, tampouco prisão. Liguei hoje no JC pra saber mais da história, mas a repórter que fez a matéria não estava. Vou procurar mais informações na segunda.
PS2: Sei que é difícil ler esse texto sem fazer uma imagem demagógica de minha pessoa, mas quero crer que tudo que escrevi é realmente o que sinto e penso.
PS3: Por favor, se você conseguiu ler tudo até aqui, comente.