E foi assim. Pensei um pouco no seu nome, na beleza dele. Vieram à minha cabeça algumas de suas explicações públicas sobre o significado, a origem indígena. Mas o cérebro não resistiu. Ao pensar em você, ele reconstituiu sua face e se deteve nos detalhes do seu rosto. Os olhos puxados, mas grandes, cor de mel. A testa extensa. O queixo pontiagudo, que começava, na minha cabeça, com um sorriso que mostrava um pouquinho os dentes de cima. Lembrei-me também das espinhas e, automaticamente, do jeito meigo com que você coça a testa e os olhos. Passa a palma da mão na testa, retira os óculos, coça fundo o olho direito com o indicador, entortando um pouco a cabeça, para depois repetir o mesmo gesto do outro lado. Há uma serenidade, um pouco por causa dos óculos (sem desconsiderar o conteúdo do que você fala, claro), ao mesmo tempo em que se evidencia um nervosismo por esconder-se momentaneamente do outro. Um tempo para evitar a exposição, para pensar, como quando você pergunta “hã?” por duas ou três vezes, antes mesmo que o interlocutor possa responder. Técnica internalizada para ganhar tempo numa argumentação? Não sei. Para mim funciona como a mais desregrada das técnicas: a do apaixonar-se.
E como você está longe, pensar no seu nome, seja só o primeiro ou ele por completo, dividido ou de trás pra frente, junto com as suas não intencionais técnicas de apaixonamento, faz com que o cérebro sinta e que o coração pense. As pupilas dilatam e se enchem d’água. Pinga uma gota quente no fundo do peito, um pouco resfriado de insegurança pela distância. A atividade cerebral fica mais intensa, mesmo que para elaborar as frases de amor clichês e cafonas.
E quando o seu nome surgiu, como eu disse no início, ele não parava de se apresentar. Eu estava pensando sobre três temas um tanto desconexos (política, futebol e amizades) e foi impressionante como, em cada um dos assuntos, o meu cérebro insistia em te “entrevistar”, em imaginar a qual conclusão conjunta poderíamos encontrar com o seu detalhismo emocional, com o seu racionalismo explosivo. Na sua teia complexa que tem o objetivo, nem sempre bem sucedido, de desembocar numa saída simples.
É o aprender de um novo modo de pensar e de sentir, de tentar entender o sentir. Recorro a você em pensamento porque és quem tirou o que há de mais profundo em mim nos últimos tempos. Você me ensinou a abraçar um livro depois de entender uma ideia fantástica, de enxergar a beleza (ou as belezas) das gotas de sangue derramadas por uma convicção racionalizada. Você gasta sua energia, talvez de um modo quixotesco, para aplicar os detalhes de um corte milimétrico e entusiasmado, a fim de enxergar o que há por trás do inexplicável. O meu pensar, depois que te conheci, aprendeu um jeito mais sicero de existir.
E depois de perceber tudo isso, novamente me rendo, cheio de lágrimas, e me bate uma tristeza que esfria um pouco aquela parte quente no meio do peito e me dá a sensação que os adolescentes têm ao questionarem o sentido da vida.
Penso o quão sem sentido a minha vida seria sem você.
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Metalinguagem: como já dizia o heterônimo Álvaro de Campos, todas as cartas de amor são ridículas.
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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Homenagem ao novo estatuto
Escrevi o texto abaixo após a esdrúxula implementação do novo estatuto do centro acadêmico de Ciências Sociais da USP. Depois de seis reuniões esvaziadas, membros da atual gestão não ouviram propostas de quem se contrapunha às novas regras, mesmo em se tratando de uma assembleia. Referendavam-se nas super democráticas reuniões. Exemplo que exala burocracia e deve ocorrer em muitos outros CAs, DAs, sindicatos pelegos Brasil afora.
Nem gritos de revolta ou suspiros de indignação faziam-no parar. Mais de uma centena de jovens trocavam farpas no saguão do prédio do meio, enquanto ele, sentado na cadeira, ao centro da mesa, calmo, com a voz firme, esforçava-se para fazer o que deveria ser feito: aprovar.
Nada mais justo: estabelecer novas regras para uma assembleia, algo inventado há apenas alguns séculos. Seis reuniões abertas com poucas pessoas teriam, a partir daquele momento, mais valor que a voz da maioria. O motivo: a representatividade tem que ser legítima. O trabalho dos poucos heróis que lapidaram as novas regras do centro acadêmico deveria ser premiado. O objetivo: aprovar.
Trabalhadores dos bancos e correios aguantaram a pressão da mídia e da direção vendida por muitas semanas, um pouco antes desse episódio, sem limite de quórum para realização de assembleia, sem maioria qualificada para aprovar suas decisões. Com os alunos das Ciências Sociais seria diferente. Pouco menos da metade dos estudantes do saguão, revoltada, argumentava com os exemplos acima citados e outros mais.
Em vão. A pequena maioria também tinha o objetivo na mente. A legitimidade tinha que ocorrer. O estatuto deveria ser aprovado. Havia ali um sentimento de bem privado: “ o estatuto é nosso”. Os olhares desprezavam os argumentos alheios, quase criando uma barreira física, sentida mais fortemente pelos ouvidos da minoria ao receber os xingamentos despolitizados. “Aprovar, aprovar, aprovar”!
À medida em que o tempo passava e as propostas eram sistematicamente aprovadas sem direito à elaboração de novas alternativas pelos estudantes presentes, a pele do rapaz da mesa se acinzentava e os óculos endureceriam. O cabelo tomava formas pontiagudas, que lembravam uma coroa, e a intransigência encontrava, aos poucos, sua equivalência material. Não adiantava. Pouco importava se todos estavam numa assembleia ou numa simples reunião para aprovar algo pré-estabelecido. A faculdade poderia cair, as vassouras poderiam se insurgir e esparramar pelo chão todo o lixo que a exploração sem escrúpulos exige diariamente que mãos cansadas de faxineiras negras limpem; estudantes poderiam ser ameaçados de expulsão após anos de combates a favor de questões democráticas como permanência estudantil; a PM poderia entrar no meio da “assembleia” para revistar todos os elementos suspeitos, com truculência e petulância. Nada disso alteraria o compasso, o ritmo, o objetivo. Nada disso vai mais importar – o estatuto é mais importante do que a luta real. O mecanismo. A bolha. Leitura da proposta. A possibilidade de supressão. Votação. Proposta aprovada. Aprovada. Aprovada.
O subjetivo tempo hábil atropelou a leitura na íntegra das novas propostas. Os fiéis seguidores das mesmas, 60% do total, concordaram em legitimar o “novo estatuto”. O sorriso robótico do coroado rapaz da mesa tinha um tom superior de ironia. Ele disse, bem feliz: “aprovado”!
Aprovado o engessamento. Aprovada a burocracia. Aprovada a burrocracia.
Mas ele se esqueceu que a revolta, quando incitada, não precisa ser aprovada. Ela cresce sem mecanismos.
________________________
Metaliguagem: primeiro parágrafo.
Nem gritos de revolta ou suspiros de indignação faziam-no parar. Mais de uma centena de jovens trocavam farpas no saguão do prédio do meio, enquanto ele, sentado na cadeira, ao centro da mesa, calmo, com a voz firme, esforçava-se para fazer o que deveria ser feito: aprovar.
Nada mais justo: estabelecer novas regras para uma assembleia, algo inventado há apenas alguns séculos. Seis reuniões abertas com poucas pessoas teriam, a partir daquele momento, mais valor que a voz da maioria. O motivo: a representatividade tem que ser legítima. O trabalho dos poucos heróis que lapidaram as novas regras do centro acadêmico deveria ser premiado. O objetivo: aprovar.
Trabalhadores dos bancos e correios aguantaram a pressão da mídia e da direção vendida por muitas semanas, um pouco antes desse episódio, sem limite de quórum para realização de assembleia, sem maioria qualificada para aprovar suas decisões. Com os alunos das Ciências Sociais seria diferente. Pouco menos da metade dos estudantes do saguão, revoltada, argumentava com os exemplos acima citados e outros mais.
Em vão. A pequena maioria também tinha o objetivo na mente. A legitimidade tinha que ocorrer. O estatuto deveria ser aprovado. Havia ali um sentimento de bem privado: “ o estatuto é nosso”. Os olhares desprezavam os argumentos alheios, quase criando uma barreira física, sentida mais fortemente pelos ouvidos da minoria ao receber os xingamentos despolitizados. “Aprovar, aprovar, aprovar”!
À medida em que o tempo passava e as propostas eram sistematicamente aprovadas sem direito à elaboração de novas alternativas pelos estudantes presentes, a pele do rapaz da mesa se acinzentava e os óculos endureceriam. O cabelo tomava formas pontiagudas, que lembravam uma coroa, e a intransigência encontrava, aos poucos, sua equivalência material. Não adiantava. Pouco importava se todos estavam numa assembleia ou numa simples reunião para aprovar algo pré-estabelecido. A faculdade poderia cair, as vassouras poderiam se insurgir e esparramar pelo chão todo o lixo que a exploração sem escrúpulos exige diariamente que mãos cansadas de faxineiras negras limpem; estudantes poderiam ser ameaçados de expulsão após anos de combates a favor de questões democráticas como permanência estudantil; a PM poderia entrar no meio da “assembleia” para revistar todos os elementos suspeitos, com truculência e petulância. Nada disso alteraria o compasso, o ritmo, o objetivo. Nada disso vai mais importar – o estatuto é mais importante do que a luta real. O mecanismo. A bolha. Leitura da proposta. A possibilidade de supressão. Votação. Proposta aprovada. Aprovada. Aprovada.
O subjetivo tempo hábil atropelou a leitura na íntegra das novas propostas. Os fiéis seguidores das mesmas, 60% do total, concordaram em legitimar o “novo estatuto”. O sorriso robótico do coroado rapaz da mesa tinha um tom superior de ironia. Ele disse, bem feliz: “aprovado”!
Aprovado o engessamento. Aprovada a burocracia. Aprovada a burrocracia.
Mas ele se esqueceu que a revolta, quando incitada, não precisa ser aprovada. Ela cresce sem mecanismos.
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Metaliguagem: primeiro parágrafo.
domingo, 18 de setembro de 2011
Diálogo intracraniano
-Eu não sei se nasci com você. Acho que não. São processos, vivências, coisas das quais você não se lembra. A maior parte ocorreu na infância e no início da adolescência, envoltas no berço de neuroses que é a família. Elas me moldaram e te fizeram. O meu êxtase é seu vacilo, é quando eu me sinto mais plena, quando eu ouço a palavra mal dita no seu gaguejar, os olhos se expremendo, a boca seca, a perna que avança e recua no meio do passo, as mãos enterradas nos bolsos, a cabeça baixa, a voz inaudível, a dúvida. Eu te mostro a sua incapacidade e ela se torna certeza. Certeza da minha vitória. Eu venço. Eu sempre venço.
-Mas é que... na verdade... é... eu...
-Hahaha é exatamente isso! Lembro-me de tantos momentos idênticos a esse que me fizeram desabrochar o sorriso mais venenoso nos lábios alheios. O prazer cítrico do deboche, da sua humilhação pública ou privada. Desde a infância, quantas vezes? Tenho recordações deliciosas. Na sala de aula, no intervalo, nas brigas conjugais dos seus pais. Não foi sempre assim, mas eu cresci com o seu sofrimento. Tornei-me forte e poderosa. Você reconhece minha autoridade e sabe que estou certa.
-Eu sei. Você me paralisa. É um congelar sem ter frio, tampar a boca sem mordaça. É um eterno desconforto, semelhante a um acorrentamento. Você não me deixa viver, não me deixa poder ser ridículo, gritar, dançar, falar alto, falar merda, falar. Sempre me coloca abaixo dos demais, dos inteligentíssimos e perfeitos medíocres confiantes. Eu sei coisas, não sou um imbecil. Tenho experiência suficiente para fazer certas escolhas, ter responsabilidade sobre elas e saber me posicionar. Você me trata como um pedaço da bosta mais asquerosa, mas todo mundo é sujo.
-Eu não nego, meu caro, eu não nego. Mas as coisas que você sabe... Você também as deve a mim. Se eu sou teu karma, o peso que te curva as costas e te põe a rastejar, também sou a luz guia da sua consciência. Ou você acha que crianças populares e desinibidas têm crises existenciais quando crescem? Uma ou outra, bem de vez em quando. A maioria atualmente está enfurnada numa rotininha de merda, com emprego estável, contas pagas, cargo de gerência, status, mulher e filhos. Se você é crítico, se tem crises, se acha que sabe alguma coisa, é graças a mim. Eu te fiz inseguro e a inseguraça fez a sua introspecção buscar o questionamento, o embasamento, a crítica.
-Se você delineou os meus caminhos um dia, hoje você os tolhe. Tenho uma amiga que convive com situação semelhante. Não sei se você se lembra. Quando a encontrei a cerveja tinha me libertado um pouco de você, mas o assunto te envolvia. Ela dizia, com uma voz tranquila e uma serenidade impressionante, que te enfrentava com sucesso. Dava aulas, expondo-se para dezenas de alunos. Arriscou-se até a ser atriz. Inevitavelmente pensei em mim. Já fui vocalista de banda adolescente, diretor de rádio universitária, ativista do movimento estudantil no interior, repórter de jornal diário que precisa entrevistar autoridades, sem vacilar. Aí ela disse que essas conquistas são ótimas, mas fugazes e não cumulativas. “O meu natural não é isso”, constatou, fazendo uma analogia com o sado-masoquismo. Eu consigo te enfrentar, mas você volta. Você sempre volta e me murcha.
-Olhe para o seu rosto no espelho. Eu estou em você na sua cara fechada, nos dentes cerrados e na barba e cabelo que escondem o rosto! O seu natural é comigo! Eu sou você! A sua personalidade só é assim por minha causa! Você é você porque eu existo! Esses dedos que batem nas teclas do computador enquanto você escreve não conseguem nem me fazer mais dominadora e agressiva neste estúpido diálogo imaginário simplesmente porque você tem vergonha de se expor! Porra, se o personagem que você inventa sou eu, faça-me de verdade! Você é fraco. Fraco e inseguro.
-Você está dentro de mim e me dilacera, esbugalha meus olhos para as lágrimas escorrerem como sangue. Você ouve meu grito entalado? Vê a cara de desespero quando eu deito no chão? Você e eu somos eu. Sem você eu não sou eu. Posso ainda te amar se te odeio cada vez mais? Posso me libertar de você se somos a mesma coisa?
-Já te provoquei, mas não quero bater boca. O diálogo sóbrio é nosso preferido. Você já me aceitou. Enfrentou-me várias vezes. Desafie-me novamente. Tente, eu não te impeço de tentar. Torço para suas lágrimas, seu sangue e seu grito se desprenderem. Que façam parte de um coro, que ganhem o mundo. Corra e conte os passos, os pulos. Meça até onde podes ir, mas não tenha a ilusão da liberdade. A corrente nos liga e, mais do que isso, nos prende. O comando é meu. Você sabe, meu amor... eu sempre vou voltar.
Metalinguagem: se esse sofrimento serve para alguma coisa, acho que é para pensar. Absurdamente difícil tê-lo escrito.
-Mas é que... na verdade... é... eu...
-Hahaha é exatamente isso! Lembro-me de tantos momentos idênticos a esse que me fizeram desabrochar o sorriso mais venenoso nos lábios alheios. O prazer cítrico do deboche, da sua humilhação pública ou privada. Desde a infância, quantas vezes? Tenho recordações deliciosas. Na sala de aula, no intervalo, nas brigas conjugais dos seus pais. Não foi sempre assim, mas eu cresci com o seu sofrimento. Tornei-me forte e poderosa. Você reconhece minha autoridade e sabe que estou certa.
-Eu sei. Você me paralisa. É um congelar sem ter frio, tampar a boca sem mordaça. É um eterno desconforto, semelhante a um acorrentamento. Você não me deixa viver, não me deixa poder ser ridículo, gritar, dançar, falar alto, falar merda, falar. Sempre me coloca abaixo dos demais, dos inteligentíssimos e perfeitos medíocres confiantes. Eu sei coisas, não sou um imbecil. Tenho experiência suficiente para fazer certas escolhas, ter responsabilidade sobre elas e saber me posicionar. Você me trata como um pedaço da bosta mais asquerosa, mas todo mundo é sujo.
-Eu não nego, meu caro, eu não nego. Mas as coisas que você sabe... Você também as deve a mim. Se eu sou teu karma, o peso que te curva as costas e te põe a rastejar, também sou a luz guia da sua consciência. Ou você acha que crianças populares e desinibidas têm crises existenciais quando crescem? Uma ou outra, bem de vez em quando. A maioria atualmente está enfurnada numa rotininha de merda, com emprego estável, contas pagas, cargo de gerência, status, mulher e filhos. Se você é crítico, se tem crises, se acha que sabe alguma coisa, é graças a mim. Eu te fiz inseguro e a inseguraça fez a sua introspecção buscar o questionamento, o embasamento, a crítica.
-Se você delineou os meus caminhos um dia, hoje você os tolhe. Tenho uma amiga que convive com situação semelhante. Não sei se você se lembra. Quando a encontrei a cerveja tinha me libertado um pouco de você, mas o assunto te envolvia. Ela dizia, com uma voz tranquila e uma serenidade impressionante, que te enfrentava com sucesso. Dava aulas, expondo-se para dezenas de alunos. Arriscou-se até a ser atriz. Inevitavelmente pensei em mim. Já fui vocalista de banda adolescente, diretor de rádio universitária, ativista do movimento estudantil no interior, repórter de jornal diário que precisa entrevistar autoridades, sem vacilar. Aí ela disse que essas conquistas são ótimas, mas fugazes e não cumulativas. “O meu natural não é isso”, constatou, fazendo uma analogia com o sado-masoquismo. Eu consigo te enfrentar, mas você volta. Você sempre volta e me murcha.
-Olhe para o seu rosto no espelho. Eu estou em você na sua cara fechada, nos dentes cerrados e na barba e cabelo que escondem o rosto! O seu natural é comigo! Eu sou você! A sua personalidade só é assim por minha causa! Você é você porque eu existo! Esses dedos que batem nas teclas do computador enquanto você escreve não conseguem nem me fazer mais dominadora e agressiva neste estúpido diálogo imaginário simplesmente porque você tem vergonha de se expor! Porra, se o personagem que você inventa sou eu, faça-me de verdade! Você é fraco. Fraco e inseguro.
-Você está dentro de mim e me dilacera, esbugalha meus olhos para as lágrimas escorrerem como sangue. Você ouve meu grito entalado? Vê a cara de desespero quando eu deito no chão? Você e eu somos eu. Sem você eu não sou eu. Posso ainda te amar se te odeio cada vez mais? Posso me libertar de você se somos a mesma coisa?
-Já te provoquei, mas não quero bater boca. O diálogo sóbrio é nosso preferido. Você já me aceitou. Enfrentou-me várias vezes. Desafie-me novamente. Tente, eu não te impeço de tentar. Torço para suas lágrimas, seu sangue e seu grito se desprenderem. Que façam parte de um coro, que ganhem o mundo. Corra e conte os passos, os pulos. Meça até onde podes ir, mas não tenha a ilusão da liberdade. A corrente nos liga e, mais do que isso, nos prende. O comando é meu. Você sabe, meu amor... eu sempre vou voltar.
Metalinguagem: se esse sofrimento serve para alguma coisa, acho que é para pensar. Absurdamente difícil tê-lo escrito.
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Conciso elogio à concisão (com um exemplo)
Há menos de dois anos, aluguei o romance "Vastas emoções e pensamentos imperfeitos", de um dos meus autores favoritos - Rubem Fonseca, em alguma biblioteca paulistana.
A trama gira em torno do fanatismo do personagem principal, um roteirista de audiovisual que tem a chance de filmar algo que realmente lhe dê prazer, em encontrar os escritos perdidos do contista soviético Isaac Bábel, exatamente para transformá-los em filme.
Bábel é famoso por ter escrito a obra "Cavalaria Vermelha", também conhecida como "O Exército de Cavalaria", que relata, em contos curtos e do ponto de vista de um participante das tropas, as convulsões sociais pelas quais a URSS passava nos anos 1920, quando enfrentava exércitos de vários países vizinhos.
Fonseca é um mestre da concisão. Com pouco texto e diálogos secos, consegue dar vazão a sentimentos que não podem ser expressos com muitas palavras. E é isso o que mais o inspirava em Bábel.
Aproveitando a promoção de uma editora, adquiri a tal obra prima do escritor soviético e fiquei apreensivo para ver se a concisão de Babel era realmente devastadora, mesmo não sendo lida no idioma original.
No primeiro conto, que tem apenas três páginas, as lágrimas já saltaram dos meus olhos.
"-Pan* - ela me diz -, o senhor está gritando muito, está muito agitado. Vou arrumar sua cama em outro canto. Desse jeito o senhor incomoda meu pai...
Ela ergue do chão suas pernas magras e o ventre redondo, e retira o cobertor do homem adormecido. É um velho morto que jaz ali, deitado de costas. Sua garganta está cortada; o rosto, partido ao meio; e um filete azul de sangue coagulado na barba, como uma lasca de chumbo.
-Pan - diz a judia, sacudindo o enxergão -, ele foi morto pelos poloneses. Ele lhes suplicou: "Matem-me no pátio interno para que minha filha não me veja morrer". Mas eles fizeram o que queriam, e ele morreu neste quarto, pensando em mim... E agora eu queria saber - disse a mulher num rompante, com uma força terrível -, queria saber em que lugar da Terra encontrarei um pai igual ao meu..."
Trecho final do conto "A trevessia do Zbrutch", de Isaac Bábel, tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
*"Pan" significa "senhor" ou "senhora" em polonês.
A trama gira em torno do fanatismo do personagem principal, um roteirista de audiovisual que tem a chance de filmar algo que realmente lhe dê prazer, em encontrar os escritos perdidos do contista soviético Isaac Bábel, exatamente para transformá-los em filme.
Bábel é famoso por ter escrito a obra "Cavalaria Vermelha", também conhecida como "O Exército de Cavalaria", que relata, em contos curtos e do ponto de vista de um participante das tropas, as convulsões sociais pelas quais a URSS passava nos anos 1920, quando enfrentava exércitos de vários países vizinhos.
Fonseca é um mestre da concisão. Com pouco texto e diálogos secos, consegue dar vazão a sentimentos que não podem ser expressos com muitas palavras. E é isso o que mais o inspirava em Bábel.
Aproveitando a promoção de uma editora, adquiri a tal obra prima do escritor soviético e fiquei apreensivo para ver se a concisão de Babel era realmente devastadora, mesmo não sendo lida no idioma original.
No primeiro conto, que tem apenas três páginas, as lágrimas já saltaram dos meus olhos.
"-Pan* - ela me diz -, o senhor está gritando muito, está muito agitado. Vou arrumar sua cama em outro canto. Desse jeito o senhor incomoda meu pai...
Ela ergue do chão suas pernas magras e o ventre redondo, e retira o cobertor do homem adormecido. É um velho morto que jaz ali, deitado de costas. Sua garganta está cortada; o rosto, partido ao meio; e um filete azul de sangue coagulado na barba, como uma lasca de chumbo.
-Pan - diz a judia, sacudindo o enxergão -, ele foi morto pelos poloneses. Ele lhes suplicou: "Matem-me no pátio interno para que minha filha não me veja morrer". Mas eles fizeram o que queriam, e ele morreu neste quarto, pensando em mim... E agora eu queria saber - disse a mulher num rompante, com uma força terrível -, queria saber em que lugar da Terra encontrarei um pai igual ao meu..."
Trecho final do conto "A trevessia do Zbrutch", de Isaac Bábel, tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
*"Pan" significa "senhor" ou "senhora" em polonês.
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
Despedidas e aniversários
Eu gosto de despedidas.
Não das que ocorrem no dia-a-dia, mas das significativas, as que te separam de pessoas e/ou lugares extremamente marcantes.
As rupturas desse tipo podem até causar prazer quando a quebra se dá em situações ruins, mas quando digo “gostar”, não é desse tipo de sentimento que estou falando.
Um rompimento de rotina costuma gerar uma crise. A vida está prestes a não ser a mesma e isso é tão assustador quanto excitante, mas o perceber isso é bem complicado.
As despedidas servem para digerir essa nova situação. É um balanço de tudo que um momento que termina representa. É um dar de cara com a realidade, muitas vezes difusa, que te sussura: você ultrapassou uma linha. O retorno já não é mais possível.
A despedida faz aceitar ou se revoltar, mas independentemente da reação, ela delineia as feições da tal realidade. Eu gosto disso.
E, semana passada, no meu aniversário, percebi que o fato de eu odiar meus próprios aniversários tinha a ver, paradoxalmente, com a mesma coisa.
Cada aniversário é como uma despedida involuntária de coisas que aconteceram, de pessoas que apareceram, e um apontar de novas perspectivas.
E talvez pela nova realidade ter feições duras, mas belas, eu perdi o medo de encará-la e, pelo menos dessa vez, gostei do meu aniversário, assim como gosto de uma importante despedida.
Não das que ocorrem no dia-a-dia, mas das significativas, as que te separam de pessoas e/ou lugares extremamente marcantes.
As rupturas desse tipo podem até causar prazer quando a quebra se dá em situações ruins, mas quando digo “gostar”, não é desse tipo de sentimento que estou falando.
Um rompimento de rotina costuma gerar uma crise. A vida está prestes a não ser a mesma e isso é tão assustador quanto excitante, mas o perceber isso é bem complicado.
As despedidas servem para digerir essa nova situação. É um balanço de tudo que um momento que termina representa. É um dar de cara com a realidade, muitas vezes difusa, que te sussura: você ultrapassou uma linha. O retorno já não é mais possível.
A despedida faz aceitar ou se revoltar, mas independentemente da reação, ela delineia as feições da tal realidade. Eu gosto disso.
E, semana passada, no meu aniversário, percebi que o fato de eu odiar meus próprios aniversários tinha a ver, paradoxalmente, com a mesma coisa.
Cada aniversário é como uma despedida involuntária de coisas que aconteceram, de pessoas que apareceram, e um apontar de novas perspectivas.
E talvez pela nova realidade ter feições duras, mas belas, eu perdi o medo de encará-la e, pelo menos dessa vez, gostei do meu aniversário, assim como gosto de uma importante despedida.
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Metalinguagem: tá um bagulho meio auto-ajuda, mas tive vontade de escrever e não me reprimi.
Metalinguagem: tá um bagulho meio auto-ajuda, mas tive vontade de escrever e não me reprimi.
terça-feira, 26 de julho de 2011
Trabalhadores da cultura perdem a paciência com o governo
Trabalhadores da cultura decidiram ocupar o prédio da Funarte, no centro de São Paulo, na tarde de ontem (25 de julho).
A manifestação já estava marcada há tempos e a pauta de reivindicações questiona o corte de 2/3 da verba para cultura no país (de 0,2% do PIB para 0,06%) e medidas como a Lei Rouanet, que transfere às empresas o poder de escolher onde irão investir o dinheiro economizado com impostos, ao entrar no projeto do governo (confira o manifesto do movimento).
Compareci à ocupação ontem, e o que me chamou mais atenção, além da transbordamento de criatividade na assembleia e nas proposições dos trabalhadores, foi um sentimento antipetista que finalmente começa a se mostrar claro.
Creio eu que, no meio da cultura, ainda perdomina a ideia de que os governos petistas são "bons para o povo" e que os mesmos investem mais na área cultural. No entanto, quem vive na pele como é ser um artista no Brasil percebe que não é bem assim, como demonstram os dois exemplos do segundo parágrafo. Tudo isso sem contar que a própria profissão proporciona questionamento a contradições postas na realidade.
Após a assembleia que acompanhei, um diretor da Funarte que consentiu com a ocupação dos manifestantes (desde que os mesmos não alterassem a programação do espaço), não quis se retirar do prédio, mesmo com a deliberação da assembleia de que nenhum funcionário da instituição permaneceria por lá.
Os trabalhadores da cultura perceberam que não poderiam deixar dentro da ocupação um indivíduo que não estava ao lado deles. O diretor certamente queria permitir uma ocupação consentida para torná-la mais branda e contornável com alguma migalha (como já havia feito ao condicionar a ocupação a não alteração da programação). O que os manifestantes disseram foi:
-Você representa o Estado que nos oprime e contra o qual estamos lutando agora!
O diretor saiu bradando contra a "ditadura da maioria". Artistas ironizavam-no, dizendo que cuspiu em sua própria história (de ex-metalúrgico) e prometiam presentear-lhe com uma cópia de "O Capital".
Se todos que sofrem com a falta de condições para fazer e refletir com cultura no país se indignarem, e não apenas quem trabalha com isso, mas principalmente quem não tem condições de desfrutar de arte (trabalhadores em geral), a ocupação pode extrpolar os muros do prédio do centro paulistano e se tornar representativa da revolta de toda a sociedade.
Por mais difícil que pareça, é possível que tudo isso aconteça. Base material para tal já existe, mas só ela não basta.
Compareça à Al. Nohtmann, 1058, e ajude a divulgar o blog!
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Metalinguagem: texto escrito rapidamente em horário de almoço.
domingo, 17 de julho de 2011
Sobre pessoas que roubam músicas
Existem pessoas que roubam músicas.
Elas aparecem na sua vida e se encaixam em letras que já existem, de melodias que já existem, de canções que você já gosta ou começou a apreciar há pouco.
Ou elas te apresentam a música e se apresentam na sua vida.
E quando as pessoas saem da sua vida, você acha que te sobraram canções, mas elas não são mais suas. Foram roubadas.
As canções são apenas a sacola que envolve outros roubos. É o invólucro audível do sequestro de lembranças. E dói ouvi-las, saem lágrimas.
E só quando o mundo gira e as pessoas voltam é possível resgatar as músicas. Procurar as emoções no fundo da sacola, esbarrando em lembranças, sem medo, com lágrimas.
Eu fui roubado.
Elas aparecem na sua vida e se encaixam em letras que já existem, de melodias que já existem, de canções que você já gosta ou começou a apreciar há pouco.
Ou elas te apresentam a música e se apresentam na sua vida.
E quando as pessoas saem da sua vida, você acha que te sobraram canções, mas elas não são mais suas. Foram roubadas.
As canções são apenas a sacola que envolve outros roubos. É o invólucro audível do sequestro de lembranças. E dói ouvi-las, saem lágrimas.
E só quando o mundo gira e as pessoas voltam é possível resgatar as músicas. Procurar as emoções no fundo da sacola, esbarrando em lembranças, sem medo, com lágrimas.
Eu fui roubado.
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Saudades do violão
Eu tinha o hábito de acordar, ficar parado um tempo, pensando, e pegar o violão. Brincava com ele, dedilhava algo aleatório até que alguma música de timbre grave ou com pouca necessidade de amplitude vocal se apresentava ao meu pensamento. Aproveitava a voz ainda rouca pelas horas de sono e cantava algo como "A Palavra Certa" ou "Cabimento", de olhos fechados, lembrando das letras ao mesmo tempo que pensava sobre elas.
E apesar de não ter inventado as letras nem as melodias, a reprodução simples das canções me fazia bem, mesmo estando sozinho.
Mas era acompanhado que as possibilidades se estendiam, iam de Abujamra a George Harrisson, de Arnaldo Baptista a Geraldo Azevedo, de Oasis a Zeca Baleiro. E a boa sensação passava de um corpo a outro.
Agora não tenho violão. Não tenho como tocar. Não tenho em quem tocar. Não tenho pra quem tocar.
Conheço as flores, mas me falta a terra. E talvez por não ter para quem dar as flores, eu coloco a culpa na terra.
E apesar de não ter inventado as letras nem as melodias, a reprodução simples das canções me fazia bem, mesmo estando sozinho.
Mas era acompanhado que as possibilidades se estendiam, iam de Abujamra a George Harrisson, de Arnaldo Baptista a Geraldo Azevedo, de Oasis a Zeca Baleiro. E a boa sensação passava de um corpo a outro.
Agora não tenho violão. Não tenho como tocar. Não tenho em quem tocar. Não tenho pra quem tocar.
Conheço as flores, mas me falta a terra. E talvez por não ter para quem dar as flores, eu coloco a culpa na terra.
domingo, 3 de julho de 2011
Sobre se sentir vivo
A sensação era a de ter muita vontade de correr, ter possibilidades para isso (já que o destino final se mostrava menos difuso), mas correntes com bolas de aço que prendiam os tornozelos não permitiam uma caminhada natural. Era como se o peso de gerações e gerações de velhos que só se preocupam com refrigeradores que não funcionam não te deixassem se movimentar. Eles embaçavam a visão, apelavam para um sentimentalismo mesquinho, faziam-se de coitados para que a dó girasse a roda da vida inútil.
-Bom dia. Hoje eu fui no mercado pra comprar verdura. Tava o olho da cara! Comprei tomate, cebola, alface. Também comprei pão. Tava horrível pra variar. Esse mercado tá ficando cada dia mais caro, mas o pão é sempre uma porcaria. Pão bom é só na padaria da avenida. É caro, mas vale a pena. Qualquer dia eu vou passar lá de novo, comprar um apresuntado e um pão de verdade, não esses pãezinhos do mercado... que foi, tá pensando na vida?!
-...
-Não tem o que pensar não. A vida é essa mesmo.
Não, não é. Não é questão de felicidade, é mais do que isso. A vida pode ser muito mais do que isso.
-Bom dia. Hoje eu fui no mercado pra comprar verdura. Tava o olho da cara! Comprei tomate, cebola, alface. Também comprei pão. Tava horrível pra variar. Esse mercado tá ficando cada dia mais caro, mas o pão é sempre uma porcaria. Pão bom é só na padaria da avenida. É caro, mas vale a pena. Qualquer dia eu vou passar lá de novo, comprar um apresuntado e um pão de verdade, não esses pãezinhos do mercado... que foi, tá pensando na vida?!
-...
-Não tem o que pensar não. A vida é essa mesmo.
Não, não é. Não é questão de felicidade, é mais do que isso. A vida pode ser muito mais do que isso.
quinta-feira, 14 de abril de 2011
segunda-feira, 11 de abril de 2011
O segredo de Scolari: alternativas
"Alberto, você é uma otimista incorrigível".
A frase acima foi proferida por meu amigo palestrino Raul, momentos antes de entrarmos no estádio do Canindé para vermos a vitória do Palmeiras sobre o Bragantino por 3x0, em jogo válido pela 16ª rodada do Paulistão 2011. Já faz umas duas semanas.
Quando o assunto é Palmeiras, Raul está certo. Tendo a minimizar os pontos negativos e exaltar um ou outro lampejo de bom futebol em jogadores medíocres.
Em 2006, eu acreditava que um time que tinha Washington Shrek e Edmundo (já com 34 anos) como dupla de ataque poderia ser campeão paulista e, quiçá, desbancar o São Paulo nas oitavas da Libertadores (o que quase aconteceu, convenhamos).
O então promissor técnico Caio Jr. tinha sido contratado em 2007. Valdívia, após aparições ruins despertou num 3x0 memorável contra o Corinthians. A esperança retornava e me iludia. O Mago me fazia esquecer que tínhamos Rodrigão, Makelele, Luiz Henrique e Max.
Em 2009, acreditei cegamente no título brasileiro com as chegadas de Muricy (o treinador mais retranqueiro do mundo - pobre torcedor santista) e Vagner Love. No ano seguinte, fechava meus olhos para as péssimas substituições de Muricy e apostava na base mantida. Resultado: a pior campanha dos últimos anos.
Com todas essas ressalvas, vou tentar embasar os motivos que me fazem acreditar no Palmeiras 2011. Futebol e análises sobre ele, por mais embasadas que sejam, não passam de especulações. Vamos a elas:
O Palmeiras de 2010, que perdeu a Sul-americana de forma vergonhosa, tinha um time medíocre. Vítor nunca jogou 10% do que apresentava no Goiás. Gabriel Silva não estava confiante por ser recém promovido da base e Rivaldo (o que veio do Avaí) mostrava as limitações de um volante improvisado na lateral esquerda. Danilo e Maurício Ramos, apesar do entrosamento, falhavam (Maurício bem mais). Pierre, após a contusão no pé, nunca mais foi o mesmo e perdeu posição para o péssimo Edinho. Tinga tinha lampejos de bom futebol. Márcio Araújo era regular, mas limitado. Lincoln e Valdivia se contundiam a todo momento. Luan era puro esforço e só. Os milagres de Marcos e Deola, os gols de falta e a técnica de Marcos Assunção, e a garra aliada à habilidade de Kleber (lutando sozinho na frente) salvavam o time. Era pouco.
Felipão não montou a equipe do ano passado e sabia das suas limitações, inclusive de ordem financeira (atraso de salários). Tinha bons goleiros e volantes, além de dois jogadores que poderiam desequilibrar do meio para frente - Kleber e Valdivia. Só isso e sem peças de reposição.
Assim, o gaúcho tentou arrumar o setor defensivo e aproveitou a boa fase de Assunção para ir ganhando jogos e alguma confiança. Mas o time era truncado, não criava jogadas, havia pouquíssimas alternativas ofensiva. Avançou na Sul-americana por enfrentar adversários muito ruins (Vitória, Universitário Sucre, reservas do Atlético Mineiro) e mesmo assim tomou aquela virada inacreditável do rebaixado Goiás, em pleno Pacaembu lotado.
No fundo do poço, as perspectivas para 2011 eram nebulosas, ainda mais com os problemas políticos das eleições do início do ano. Como se explica então a liderança do Palmeiras no Paulistão faltando apenas uma rodada para o término da primeira fase, desbancando os badalados Santos, Corinthians e São Paulo?
Em 1998, a Parmalat ajudou Scolari a trazer reforços importantes, como Arce, Paulo Nunes e Oséas, que se firmaram rapidamente como titulares. No entanto, o que ninguém lembra é das opções alternativas de jogo - das peças de reposição com menos destaque, mas que podiam mudar características do time ao longo das partidas e dos campeonatos.
Os rodados Almir e Darci, além do promissor Arílson foram contratados sem tanta pompa, mas se tornaram fundamentais na conquista da Copa do Brasil e da Mercosul daquele ano. Enquanto Paulo Nunes era mais um segundo atacante, Almir tinha características de ponta driblador. Quando Zinho não estava bem ou se cansava, Darci mantinha a qualidade no passe, acrescentando bons chutes de fora da área. Arílson, como um meia-atacante, cadenciava menos a bola do que Alex, porém, era incisivo rumo à área adversária.
Foi isso que Felipão fez no começo deste ano: deu ao Palmeiras mais opções, com a possibilidade de mudar as peças de acordo com o adversário, sem mexer na estrutura do esquema tático e sem gastar quantias absurdas.
No setor defensivo do meio de campo, temos várias opções. Os titulares são Márcio Araújo e Marcos Assunção, mas se o jogo for mais pegado ou o adversário tiver bons cabeceadores, o técnico coloca Chico, mais viril (como contra Uberaba e Bragantino). Se é necessária uma saída de bola mais rápida, João Vitor tem essa característica e chuta bem de fora da área. No ataque, Kleber é intocável, mas Luan (para um jogo físico mais forte), Max Santos (para abrir caminhos com dribles na linha de fundo) e Adriano Michael Jackson (segundo atacante mais veloz) são opções.
E como esses jogadores que dão novas opções de jogo não são badalados, entram com uma vontade muito grande.
(Max Santos e João Vitor)
Aliado a esse fator, Scolari resolveu o problema da zaga com as contratações de Thiago Heleno e Cicinho, e com insistências nos treinamentos com Gabriel Silva e Rivaldo (assim como fez com Júnior em 97/98).
Eis os trunfos de Felipão: um time consistente defensivamente (seis gols sofridos em 18 jogos no Paulistão), com opções variadas no meio campo, alternando jogadas e jogadores, e com atletas motivados.
No entanto, o trunfo maior são os jogadores-alternativas, que abrem um leque de possibilidades de jogo e tendem a melhorar tecnicamente, ainda mais com as chegadas de Wellington Paulistelroy e Maikon Leite (em junho).
Como disse Felipão em sua volta ao Palestras, finalmente parece que vamos ser felizes novamente.
Eis o meu time base para o restante da temporada (opções entre aspas - mudando para o 4-3-3):
Marcos (Deola), Cicinho, Danilo (Maurício Ramos) Thiago Heleno e Gabriel Silva (Rivaldo); Márcio Araújo (Pierre), Marcos Assunção, Patrick (Maikon Leite) e Valdivia; Kleber e Wellington Paulista.
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Metalinguagem: minha ideia era escrever este post no início do ano, assim como fiz em 2010. Fui deixando para depois e tirei-o da gaveta apenas agora, mas ainda a tempo.
quarta-feira, 16 de março de 2011
Um animal
O corpo se liga ao chão por um emaranhado de varizes. Elas recobrem todas as veias de ambas as pernas, cada dia mais roxas. Estruturas que sustentam um corpo muito maltratado. Duas hérnias no umbigo auxiliam a consciência a dar uma resposta auto-enganadora para o sobrepeso. A boca tem dentes falsos que mastigam com dificuldade e passam o alimento para as papilas gustativas já ralas, mas responsáveis pelo único prazer que sobrevive.
A vagina, que proporcionou momentos inesquecíveis, tem verrugas e infecções. Os seios, objetos de prazer alheio e próprio, fonte de alimentação dos filhos, não encontram outras costas para roçarem. Estão caídos, doem.
As costas trabalharam tanto que diminuíram dez centímetros nas últimas décadas e foram capitulando, curvando-se. O esmalte cor-de-rosa enfeita as unhas de cutículas feitas - o único luxo é ir à manicure. As mãos de pele fina que ainda cozinham, passam, lavam e limpam, apresentam manchas da idade, bolinhas de um marrom escuro.
A expressão facial enrugada tenta corrigir o caminho dos pelos caídos ao longo dos anos, com a ajuda do lápis de sobrancelha. Olhos operados de catarata enxergam mal, mas veem muita coisa pela janela, mostram para o cérebro e para a boca o que deve ser descrito com palavras que caíram em desuso.
Os olhos viram toda a vida passar na rua, pela janela eletrônica, pela janela do quarto.
A saudade de um tempo maravilhoso que nunca existiu. A esperança de uma época melhor que nunca virá. A eterna espera, o elencar de metas fúteis - a formatura dos netos, o casamento dos netos, a compra do carro dos netos, da casa dos netos. As mentiras e indiretas do egoísmo sublimadas nas “conquistas” dos netos. O viver sem motivo. O achar isso normal.
Para uma velha, a noite chega mais cedo. O corpo cansado emite sons, resmunga. Ela se deita enquanto a cama range. Duas, três horas se passam de sonhos (outro resquício de prazer) com um tempo que não existiu, com pessoas muito idealizadas. A bexiga a acorda. Sussuros. A cama range novamente. Com muito esforço ela consegue se sentar. Tosse. Arrasta o balde guardado debaixo da cama. A vagina já livre da calcinha expele um jato contínuo, que bate duro no plástico, emite um som triste que ecoa pela casa velha, anacrônica, enche o recipiente e respinga no chão, repleto de tacos soltos.
É um ser humano. Um animal histórico que apreendeu as evoluções dos homens educado pela cultura da época. Tem noção da morte que se aproxima. Ao mesmo tempo, é a morte que faz com que se torne, a cada dia, um animal. Apenas.
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Metalinguagem: escrevi após assistir "Cisne Negro", de Aranofsky, e ler "A Metamorfose", de Kafka.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
Complemento do post anterior
Não sou um cachorro que pensa que o mundo é apenas a ração, a chegada do dono, o biscoito de brinde.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
Sobre pessoas que ficam velhas
Ser jovem é ser dialético, ter uma relação clara entre a sua condição material, seu entendimento de mundo e suas atitudes. É não esquecer tudo o que você aprendeu simplesmente por estar momentaneamente em outro contexto. É ter discernimento suficiente para romper com pensamentos e práticas antigas se você achar que elas não fazem mais sentido, mas não é fechar os olhos para as responsabilidades que se colocam na sua frente, adquiridas por meio de experiências anteriores. É usar seu acúmulo para seguir ou romper, mas sempre mantendo vivo o fluxo entre o que se é, se pensa, se diz e se faz.
Digo isso porque conheço pessoas que ficaram velhas. Elas têm a minha idade (25 anos) ou talvez sejam até mais novas e se ligam ao mundo simplesmente pela rotina do trabalho. Trabalham das 9h às 18h, depois estão muito cansadas para fazerem qualquer outra coisa que não seja uma pausa de entretenimento na dura rotina alienante do trabalho.
Concordo que um intervalo seja necessário. É preciso respirar, refletir sobre arte e cultura, conhecer pessoas, trocar ideias, livrar-se com leveza do emburrecimento causado pelo trabalho. Mas estou falando de pessoas que são críticas ao capitalismo, que têm plena noção de que não se chegará a uma sociedade justa nos marcos desse regime.
Essa criticidade, cada vez menos comum em tais mentes, aparece às vezes em mesas de bar, em posts de 140 caracteres de microblogs, mas dificilmente nas ruas, nos atos, nas passeatas ou nos comitês públicos de organização das mesmas. Motivo? Preguiça de gastar horas de lazer, pouco contato com organizações políticas, ranços preconceituosos, adaptação, noção de que a fase universitária-sem-responsabilidades passou e que, agora, como adulto, uma postura mais comedida é necessária.
Qual seria a diferença entre um estudante que passou todo o período de graduação em uma universidade pública, alheio a qualquer tipo de mobilização, e uma pessoa que militou durante o mesmo período, mas que agora não move uma palha, sendo que os problemas se mantiveram ou pioraram?
Sinceramente, dói em mim ver pessoas que tinham um grande senso crítico se deixarem levar por ranços anti-partidários e anti-acadêmicos, como se houvesse a perda do senso crítico em tais espaços pelo fato de serem tomados por organizações que têm pouca abrangência na sociedade. A dor que sinto se transforma em medo de que o apoio moral que essas pessoas dão a mobilizações populares também se torne ranço no futuro.
A resposta da pergunta de dois parágrafos atrás é: quase nenhuma. O "quase" se refere à crise de consciência ou à tentativa que a mente dessas pessoas faz de justificar o não comparecimento e o não envolvimento em atos e passeatas de grandes proporções, além de reuniões organizativas das mesmas que ocorrem em São Paulo, neste momento.
segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
Emicida e o rap nova geração
Não tenho muito repertório para falar de rap. Comecei a curtir em 2009. Antes, ouvia, prestava atenção, mas não pirava nas letras ou no som como ocorre hoje em dia, conseguindo diferenciar o estilo e a levada de cada MC ou grupo.
E justamente na época em que comecei a ouvir Rap é Compromisso - disco sensacional de Sabotage, chegou aos meus ouvidos (não me lembro como) a música "Sozim", de Emicida. Baixei a mixtape Pra quem já mordeu cachorro por comida, até que eu cheguei longe e gostei muito. Fiquei viciado.
Várias coisas chamaram minha atenção. Emicida interpreta as músicas, mas não apenas no sentido de executá-las. Tenta passar sentimento sobre o que está cantando. Quando a letra pede, ele sussura, grita, faz interjeições. Interpreta num sentido mais teatral, algo pouco comum no rap.
Esses comentários já demonstram que, para fazer o seu som, não basta o MC "ir pro estúdio e dar REC" - como diz a letra de "Vai ser rimando". As bases são mais elaboradas que o normal e misturam a batida característica do estilo com ritmos como samba, reggae e rock. Li uma entrevista em que Leandro (nome verdadeiro por trás da alcunha) revela ter preocupações em fazer um rap mais brasileiro.
E no elemento principal, a letra, o MC também varia. Há rimas mais introspectivas, outras românticas. Ele também fala sobre as rinhas de MC's que o deixaram famoso e, obviamente, da pobreza da favela e do sentimento de revolta comum e essencial para todo rapper. Tudo isso permeado por comparações inusitadas nas letras engraçadas, referências sobre grupos nacionais e até sobre cinema.
Para mim, Emicida não é apenas um cara com uma grande habilidade técnica em improvisar. É um excelente intérprete e tem méritos na criação das letras e na elaboração de bases. O conteúdo, às vezes criticado por não ser tão combativo quanto o dos discos iniciais de Racionais, tem a ver com o contexto em que foi produzido. Leandro tem 25 anos e sofreu com a miséria, mas não sofre mais. Eu diria que ele faz parte de uma geração que se beneficiou com as reformas de Lula, considera que toda a vida na periferia está "melhorando" e basta ter um esforço individual para que isso ocorra. É uma galera que quer mudar o sistema dentro dele, tentando não se corromper ao longo do caminho. Não concordo com essa visão, mas não vou exigir uma consciência política de um cara que cresceu e teve contato com outras referências para formar a seus pensamentos.
A questão é que Emicida está ganhando mais espaço e novas oportunidades estão surgindo. Muitas delas são contraditórias com o que suas letras expressam. Em "Hey Rap!", afirma que "muitos se venderam por notas de 100". Depois de um tempo, ele gravou um clipe com NX Zero. "Ah, é o trampo dele, ele tem que sobreviver, vai ganhar uma grana".
Discordo. Os Racionais, em 1998, no auge das possibilidades comerciais, recusaram convites, desdenharam dos clipes da MTV, exaltaram que o público deles era a periferia e, muito provavelmente, não fariam parcerias com branquinhos para quem as mães deles lavaram roupas por muitos anos. Até hoje, apesar de ter perdido a fúria do início, Mano Brown e os outros ainda fazem reuniões e decidem por voto onde eles devem ou não se apresentar.
Se o Leandro não se vendeu, ele está assumindo que gravou com o NX Zero porque gosta da banda. Isso seria possível? Se a grana falou mais alto que as convicções ideológicas, mesmo não sendo uma questão de vida ou morte (sobrevivência para comer), ele se vendeu sim.
Fui a um show do Emicida no Sesc Pompeia, no último sábado. Em cerca de 80% de suas intervenções com o público, nos intervalos das músicas, ele ironizava críticas sobre sua nova postura. Nas músicas recentes da mixtape Emicidio, há muitas rimas com esse tipo de conteúdo - que faz um ataque a quem o acusa de vendido. Se ele não se vendeu, por que se preocupa tanto com essa questão?
"Se sua vida não é seu rap, seu rap é piada pra mim" dizia Emicida na primeira mixtape. No clipe com NX Zero, afirma "Venha de onde vier, tanto faz, eu só quero encontrar a minha paz". Na nova mixtape: "Quero problemas fúteis, preocupações inúteis", ou "Depois que se acostuma com a primeira classe é foda" e "Fui quem obedece agora eu sou quem manda, vou ver o que acontece, mas lá da varanda. É tipo um trampo social, sério, tô dando a chance de ver como nasce um império". É, podemos dizer que Leandro se manteve coerente com a primeira frase, mas a vida mudou. E é aí que está a essência de quando dizem que ele se vendeu. Não é apenas uma relação comercial, é o fato de exaltar o "mérito" que teve para subir na vida, de esbanjar a situação que tem atualmente e despolitizar as letras. E, para mim, é isso que está acontecendo.
E nesse show que fui, Kamau, outro rapper da nova geração, apresentou-se junto com Emicida. Em um intervalo entre as músicas, os dois conversaram sobre transporte público, novamente ironizando quem os criticava porque agora estavam andando de metrô em vez de pegarem busão lotado. Após o término do show, um amigo meu pediu para Kamau dar um salve na galera sobre o ato contra o aumento da passagem do busão, que será no próximo dia 27, às 17h, no centro de São Paulo. A resposta do MC, que estava com o microfone na mão, foi:
-Nem vira, tá rolando um som aí, é foda.
Isso é ser rua? Todo mundo da favela pega busão e não custaria nada avisar um público que tem possibilidades reais de comparecer ao ato. A resposta resume de certa forma o rap nova geração. Esteticamente atraente, calcado no mérito individual e na tentativa (a meu ver, certamente frustrada) de mudar o sistema por dentro.
Como diz a letra de "Beira de Piscina", em que Emicida afirma estar no pique "Lula o Filho do Brasil". Acho que é isso. Um rap compatível com a ilusão que Lula proporcionou.
___________
Metalinguagem: gosto de Emicida, como disse no início, o que não me impede de criticar principalmente o conteúdo das últimas letras.
E justamente na época em que comecei a ouvir Rap é Compromisso - disco sensacional de Sabotage, chegou aos meus ouvidos (não me lembro como) a música "Sozim", de Emicida. Baixei a mixtape Pra quem já mordeu cachorro por comida, até que eu cheguei longe e gostei muito. Fiquei viciado.
Várias coisas chamaram minha atenção. Emicida interpreta as músicas, mas não apenas no sentido de executá-las. Tenta passar sentimento sobre o que está cantando. Quando a letra pede, ele sussura, grita, faz interjeições. Interpreta num sentido mais teatral, algo pouco comum no rap.
Esses comentários já demonstram que, para fazer o seu som, não basta o MC "ir pro estúdio e dar REC" - como diz a letra de "Vai ser rimando". As bases são mais elaboradas que o normal e misturam a batida característica do estilo com ritmos como samba, reggae e rock. Li uma entrevista em que Leandro (nome verdadeiro por trás da alcunha) revela ter preocupações em fazer um rap mais brasileiro.
E no elemento principal, a letra, o MC também varia. Há rimas mais introspectivas, outras românticas. Ele também fala sobre as rinhas de MC's que o deixaram famoso e, obviamente, da pobreza da favela e do sentimento de revolta comum e essencial para todo rapper. Tudo isso permeado por comparações inusitadas nas letras engraçadas, referências sobre grupos nacionais e até sobre cinema.
Para mim, Emicida não é apenas um cara com uma grande habilidade técnica em improvisar. É um excelente intérprete e tem méritos na criação das letras e na elaboração de bases. O conteúdo, às vezes criticado por não ser tão combativo quanto o dos discos iniciais de Racionais, tem a ver com o contexto em que foi produzido. Leandro tem 25 anos e sofreu com a miséria, mas não sofre mais. Eu diria que ele faz parte de uma geração que se beneficiou com as reformas de Lula, considera que toda a vida na periferia está "melhorando" e basta ter um esforço individual para que isso ocorra. É uma galera que quer mudar o sistema dentro dele, tentando não se corromper ao longo do caminho. Não concordo com essa visão, mas não vou exigir uma consciência política de um cara que cresceu e teve contato com outras referências para formar a seus pensamentos.
A questão é que Emicida está ganhando mais espaço e novas oportunidades estão surgindo. Muitas delas são contraditórias com o que suas letras expressam. Em "Hey Rap!", afirma que "muitos se venderam por notas de 100". Depois de um tempo, ele gravou um clipe com NX Zero. "Ah, é o trampo dele, ele tem que sobreviver, vai ganhar uma grana".
Discordo. Os Racionais, em 1998, no auge das possibilidades comerciais, recusaram convites, desdenharam dos clipes da MTV, exaltaram que o público deles era a periferia e, muito provavelmente, não fariam parcerias com branquinhos para quem as mães deles lavaram roupas por muitos anos. Até hoje, apesar de ter perdido a fúria do início, Mano Brown e os outros ainda fazem reuniões e decidem por voto onde eles devem ou não se apresentar.
Se o Leandro não se vendeu, ele está assumindo que gravou com o NX Zero porque gosta da banda. Isso seria possível? Se a grana falou mais alto que as convicções ideológicas, mesmo não sendo uma questão de vida ou morte (sobrevivência para comer), ele se vendeu sim.
Fui a um show do Emicida no Sesc Pompeia, no último sábado. Em cerca de 80% de suas intervenções com o público, nos intervalos das músicas, ele ironizava críticas sobre sua nova postura. Nas músicas recentes da mixtape Emicidio, há muitas rimas com esse tipo de conteúdo - que faz um ataque a quem o acusa de vendido. Se ele não se vendeu, por que se preocupa tanto com essa questão?
"Se sua vida não é seu rap, seu rap é piada pra mim" dizia Emicida na primeira mixtape. No clipe com NX Zero, afirma "Venha de onde vier, tanto faz, eu só quero encontrar a minha paz". Na nova mixtape: "Quero problemas fúteis, preocupações inúteis", ou "Depois que se acostuma com a primeira classe é foda" e "Fui quem obedece agora eu sou quem manda, vou ver o que acontece, mas lá da varanda. É tipo um trampo social, sério, tô dando a chance de ver como nasce um império". É, podemos dizer que Leandro se manteve coerente com a primeira frase, mas a vida mudou. E é aí que está a essência de quando dizem que ele se vendeu. Não é apenas uma relação comercial, é o fato de exaltar o "mérito" que teve para subir na vida, de esbanjar a situação que tem atualmente e despolitizar as letras. E, para mim, é isso que está acontecendo.
E nesse show que fui, Kamau, outro rapper da nova geração, apresentou-se junto com Emicida. Em um intervalo entre as músicas, os dois conversaram sobre transporte público, novamente ironizando quem os criticava porque agora estavam andando de metrô em vez de pegarem busão lotado. Após o término do show, um amigo meu pediu para Kamau dar um salve na galera sobre o ato contra o aumento da passagem do busão, que será no próximo dia 27, às 17h, no centro de São Paulo. A resposta do MC, que estava com o microfone na mão, foi:
-Nem vira, tá rolando um som aí, é foda.
Isso é ser rua? Todo mundo da favela pega busão e não custaria nada avisar um público que tem possibilidades reais de comparecer ao ato. A resposta resume de certa forma o rap nova geração. Esteticamente atraente, calcado no mérito individual e na tentativa (a meu ver, certamente frustrada) de mudar o sistema por dentro.
Como diz a letra de "Beira de Piscina", em que Emicida afirma estar no pique "Lula o Filho do Brasil". Acho que é isso. Um rap compatível com a ilusão que Lula proporcionou.
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Metalinguagem: gosto de Emicida, como disse no início, o que não me impede de criticar principalmente o conteúdo das últimas letras.
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
"Que vergonha deve ser: reprimir trabalhador pra ter o que comer"
A tarifa de ônibus aumenta de já abusivos R$ 2,70 para R$ 3 e é assim que os policiais de Kassab e de Alckmin agem contra estudantes que caminhavam em ato, na região central de São Paulo, protestando contra o óbvio, na tarde de ontem.
Saldo: dezenas de manifestantes presos no 3o Distrito Policial (esquina da R. Aurora com Av. Rio Branco), muitos jovens espancados e a mídia tradicional dando pouco destaque.
E o mais engraçado foi ver, após a dispersão do ato, um policial e sua namorada caminhando tranquilamente rumo à estação Anhangabaú, para pegarem o metrô. Provavelmente muitos colegas dele voltaram para as suas casa de ônibus... sem pensar que há poucas horas estavam atirando em pessoas que lutavam pelo direito de todos que dependem de transporte público. A farda não deixa o policial pensar.
E o mais engraçado foi ver, após a dispersão do ato, um policial e sua namorada caminhando tranquilamente rumo à estação Anhangabaú, para pegarem o metrô. Provavelmente muitos colegas dele voltaram para as suas casa de ônibus... sem pensar que há poucas horas estavam atirando em pessoas que lutavam pelo direito de todos que dependem de transporte público. A farda não deixa o policial pensar.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
Onze
Aí o ano veio e, à beira do mar, tudo parecia estar indo bem.
Um coqueiro ali, outro lá, um caminho de pegadas, risadas, desencontros e encontros inacreditáveis.
E eu dizia que era só uma passagem de tempo estabelecida pelo homem, as coisas não podem melhorar assim, de uma hora pra outra.
Mas o mar não mente e mostra que a maré existe. E ela estava tão a favor que começou a se mover contra, misturou pessoas, histórias (que não deveriam se misturar, mas que só com essa junção se fizeram possíveis).
De zero a mil, a chance de tudo acontecer do jeito que aconteceu nem entraria nas estatísticas. Tudo coincidiu tão assustadoramente que tive medo, medo de dar certo e de não dar certo, de deixar o que poderia dar certo não dar certo.
Mas houve um encontro, três olhares assustados e recíprocos, dúvidas, palpitações, uma mensagem de texto, uma fisionomia na mente - de cabelos encaracolados - e um sonho tão real que deixa de ser clichê.
Ela só atendia o telefone e falava coisas que poderiam ser mentirosas, mas que, na hora, eu acreditava.
Um coqueiro ali, outro lá, um caminho de pegadas, risadas, desencontros e encontros inacreditáveis.
E eu dizia que era só uma passagem de tempo estabelecida pelo homem, as coisas não podem melhorar assim, de uma hora pra outra.
Mas o mar não mente e mostra que a maré existe. E ela estava tão a favor que começou a se mover contra, misturou pessoas, histórias (que não deveriam se misturar, mas que só com essa junção se fizeram possíveis).
De zero a mil, a chance de tudo acontecer do jeito que aconteceu nem entraria nas estatísticas. Tudo coincidiu tão assustadoramente que tive medo, medo de dar certo e de não dar certo, de deixar o que poderia dar certo não dar certo.
Mas houve um encontro, três olhares assustados e recíprocos, dúvidas, palpitações, uma mensagem de texto, uma fisionomia na mente - de cabelos encaracolados - e um sonho tão real que deixa de ser clichê.
Ela só atendia o telefone e falava coisas que poderiam ser mentirosas, mas que, na hora, eu acreditava.