Mercy Zidane: maio 2016

terça-feira, 31 de maio de 2016

Cabelo na sopa

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terça-feira, 24 de maio de 2016

O que Macunaíma tem a ver com Avatar?



Se existia um livro maldito na escola quando eu era adolescente, era Macunaíma, o romance de 1928, de Mário de Andrade. Um clássico da literatura brasileira? Sim, mas odiado por todos os alunos que ousavam ler o original em vez dos resumos mastigados das apostilas pré-vestibular.

"Uma história sem pé nem cabeça", diziam os colegas. "O cara vai de São Paulo ao Nordeste num minuto e a pé; fica falando um monte de nome de fruta desconhecida, de passarinho; ele se transforma em vários bichos e depois volta a ser gente; o livro esquece de contar a história principal. Não faz sentido!"

Com dó da minha cara de pavor em pensar sobre encarar o mar de desconstrução da narrativa tradicional que Macunaíma traria, minha mãe releu a obra para me contar a história antes do vestibular. E ela, que também tinha um pé atrás com o herói e suas aventuras, gostou bastante da leitura. Não dei bola.

Já na faculdade, abrindo a cabeça para muita coisa, decidi que era o momento. Peguei a edição de 1972 com capa azul e folhas razoavelmente amareladas e fui pra cima. Ao fim da rápida leitura, confirmei que tudo aquilo que meus colegas diziam era verdade. Eles só erraram numa coisa: o livro não era chato, era incrível!

A velocidade da narrativa, as lendas indígenas, os ditos populares, o humor, o urbano, a busca pela muiraquitã  (que é muitas vezes esquecida enquanto ocorrem as aventuras do herói e de seus irmãos), a São Paulo que vira metrópole com fábricas, ingleses e trabalhadores, os estrangeiros, a crítica ao português eloquente na Carta Pras Icamiabas (Michel Temer podia dar uma lida nesse romance, inclusive), sem esquecer da já citada desconstrução da narrativa tradicional... É fácil pensar em elementos marcantes do livro mesmo quando puxamos rapidamente pela memória. Mas, antes de tentar extrair um aspecto que faz esse livro tão legal pra mim...

... Façamos, sem preconceito, uma breve análise de um desenho animado pop infantojuvenil


Avatar: A Lenda de Aang não é o mesmo Avatar de James Cameron, que tem aqueles bichos grandes e azuis. Trata-se de um história passada por volta de 1800 num mundo imaginário, criado por Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, e que é dividido em quatro civilizações: a Nação do Fogo, as duas Tribos da Água (do norte e do sul), o Reino da Terra e os Nômades do Ar. O elemento guia de cada uma delas costuma moldar a personalidade dos habitantes dos "países" e também pode ser "dobrado" ou, na tradução adaptada ao português, dominado. Assim, quem nasce na Nação do Fogo, com treino e sorte, desenvolve a capacidade de dominar o fogo, de modo a gerá-lo com a palma da mão. Dobradores de terra podem abrir fendas no chão e mover pedras; já os que dominam a água moldam grandes ondas; os dobradores de ar são capazes de criar ventanias e furacões. De tempos em tempos, nasce o Avatar, o único humano que pode dominar, ao mesmo tempo, todos os elementos para ajudar a recolocar o mundo em equilíbrio.

"Ok, isso não é exatamente original", você pode dizer. É verdade. Avatar, à primeira vista, parece mais um desenho bobinho, daqueles em que o bem sempre vence o mal... Mas não é bem assim. O ponto de vista do mal é levado em conta, contextualizado; e a produção também faz o espectador refletir, sem moralismos, sobre coisas complexas. Em certos episódios, levanta-se a questão de que roubar ou mentir, dependendo da situação, pode ser algo necessário, por exemplo. O anime faz apologia à reflexão e à paciência, algo cada vez mais fora da realidade de muitas crianças. Sem contar a evolução dos personagens, muito carismáticos, o protagonismo das mulheres (a continuação da série teve uma garota como personagem principal), e os roteiros, que te deixam com vontade de assistir a vários episódios em sequência.

O pano de fundo que une todas as sagas do desenho de forma tão especial é a cultura oriental, como este artigo, de David Ehrlich, demonstra muito bem. "Os nomes, os vestuários, a arquitetura, a escrita, os estilos de luta, a política, até mesmo a animação, tudo foi concebido para se assemelhar a aspectos culturais asiáticos, principalmente chineses, japoneses e indianos, entre outros". É uma apropriação por parte dos dois autores estadunidenses de vários elementos orientais, de modo a simplificá-los para caberem num desenho animado infantil - o que faz com que o público não apenas se divirta, mas aprenda um pouco sobre uma visão cultural não dominante.

Em Macunaíma também há algo parecido. Sem pretensão de criar uma enciclopédia da cultura brasileira, Mário de Andrade fez um livro que brinca com toda essa mistureba tupiniquim, lusoitaliana, afrobrasileira e capira, contando uma história com um pano de fundo capaz de mostrar um pouco dos índices de nossa cultura. Do ditado que ninguém sabe de onde veio (mas que todo mundo tem na ponta da língua) à brincadeira com a "preguiça" que os europeus imputaram aos índios brasileiros, Macunaíma dá pistas sobre a visão do autor a respeito da constituição cultural do brasileiro, tão influenciada pelos indígenas, mas cada vez mais engolida pelo modo ocidental de viver.

Avatar também tem esse caldo "indicial", que pode ser superficial por um lado, mas que permite ao interessado conhecer certos aspectos de uma cultura que foge do padrão ocidental. Yin & yiang, meditação, vegetarianismo e kung fu são exemplos que aparecem no pano de fundo do desenho.

Ao ver os blocos de mistura cultural que questionam a visão ocidental padrão em um livro brasileiro de 1928 e em um desenho animado estadunidense de 2005, por mais diferentes que possam ser, e por elas terem a capacidade de despertar a curiosidade para outras visões de mundo, resolvi escrever este texto e fazer o desenho lá de cima, que junta, de forma um tanto inusitada, é verdade, ícones dos dois sincretismos: um Macunaíma preguiçoso em pleno estado avatar.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Correndo pra trás

Charge baseada em sugestão do meu amigo Marcos André Andrade, o Marquito. Para ver em alta resolução, clique na imagem.

terça-feira, 10 de maio de 2016

O que seria de nós sem a pirataria digital?


Minha geração, que passou a infância nos anos 90 (com bermudas de surf e quadriculadas), viu o nascimento para o grande público dos fantásticos computadores pessoais. Junto com esses trambolhos mágicos, ouviu os primeiros ruídos da internet discada e saboreou o "surround" do kit multimídia (que eram duas caixinhas de som estridentes). Ah, a tecnologia...

Antes disso e até a internet dar uma melhorada, consumíamos fitas cassete piratas, já que a grana era curta para comprar CDs (esses últimos custavam 20 mangos e eram os melhores presentes para festas com "amigo secreto"). Mesmo assim, a variedade era pequena e a qualidade, baixa.

Quando surgiu o primeiro Napster (hoje um Spotify genérico), percebi que não precisaria do rádio para ouvir uma música na hora em que eu quisesse, e nem teria que comprar um disco inteiro por causa de uma música; abria-se até a possibilidade de conhecer um artista que talvez nem tivesse lançado uma canção em CD, ou que jamais seria contratado por uma grande gravadora, ou que nunca teria um disco distribuído no Brasil.

A moda na escola virou colecionar MP3 - eu anotava as que conseguia baixar no fim de semana e comparava com o desempenho dos colegas, cada um se orgulhando dos grandes feitos de garimpagem: "consegui baixar duas da Legião Urbana e uma do Ira". Até que um nerd com PC high tech começou a vender clandestinamente o serviço de gravação de CDs com as músicas escolhidas pelo cliente! Os membros do 4fun, minha extinta banda adolescente que tocava o melhor do pop/rock nacional e internacional, foram fregueses assíduos do colega para decorar, analisar e ensaiar as músicas para pequenas (e inesquecíveis) apresentações.

E quando surgiu a febre dos Pokémon e alguém descobriu que o repetitivo desenho tinha um jogo fenomenal para Gameboy? "Mas quem tinha Gameboy"? Pois é, ninguém! Só que havia uma versão pirata para PC (baixada na internet) que fez muitos de meus colegas gastarem horas e horas evoluindo seus bichinhos e batalhando nos arbustos virtuais. O mesmo aconteceu com Counter-Strike e o primoroso Diablo II.

Fiquei mais velho e me interessei por outros estilos musicais. A curiosidade foi sendo saciada e atiçada com torrents que me mostravam as doideiras dos anos 60, os clássicos da MPB, as velharias do rap e muitas, muitas novidades. Também quis abrir minha cabeça para o cinema e me fascinei por documentários - os filmes de Coutinho, que só pude conhecer pela internet, levaram-me a mais raridades, impossíveis de serem encontradas em locadoras ou compradas. Corri atrás de jogos de Atari e de Master System para sentir o gosto da nostalgia; baixei Fifas e PES (jogos de futebol virtual) que me fizeram dar muita risada em épicas partidas com meus amigos.

Como deu para perceber, eu poderia falar por horas sobre outros conteúdos que baixei na internet e que foram importantes de algum modo na minha vida. Tenho certeza de que o mesmo deve acontecer com o leitor, que também tem noção de que se trata de um tema espinhoso. Quem produz quer receber, mas os estúdios, gravadoras e produtoras metem o preço lá em cima para garfar o lucro num país em que muita gente não tem grana nem para o básico. Mas aí como fica quem produz? Complicado.

Foi só recentemente que o modelo Netflix de acesso a um conteúdo variado (mas também limitado) por um preço bem mais acessível surgiu, recebendo elogios do público e servindo de exemplo para os mercados de jogos (Steam), música (Spotify), quadrinhos, livros e mais. Alguns artistas reclamam da fatia a eles destinada, apesar de ser uma boa plataforma de divulgação.

A pirataria decaiu com o estabelecimento desses serviços de streaming a preços módicos e que oferecem menos riscos que downloads cheios de pop-ups com pornografia; alguns hackers famosos estão anunciando desistência. Será o fim do modelo que ampliou o acesso cultural de um modo nunca visto antes na história desse mundão? Difícil dizer.

Mesmo (no pior dos cenários) que os algoritmos censores decretem o gradual fim, não dá para negar que o repertório cultural de uma enormidade de gente deve muito à amiguinha pirata.

terça-feira, 3 de maio de 2016

24, a camisa maldita no futebol brasileiro

Quando o esporte mais popular do mundo ainda levava menos gente aos "stadiums" que corridas de cavalo, não havia número nas costas das camisas dos jogadores. Devia ser bem difícil diferenciar os praticantes de uma partida de "football", que ostentavam toucas e bigodinhos, "bicudando" as pesadas pelotas de couro de dinossauro (hehe).

Com o passar do tempo, alguém teve a brilhante ideia de usar a álgebra para identificar melhor os esportistas. Numeração de 1 a 11. Funcionava otimamente bem em partidas internacionais e até dava um charme a mais ao espetáculo (parece que, no Brasil, a numeração de camisas se estabeleceu no fim da década de 20 do século XX).

Mesmo com as mudanças frequentes de esquemas táticos, alguns números viraram sinônimos de posições: a camisa 1 é de goleiro, a 2 é típica do lateral direito, a 5 é a do volante, a 9 é a do centroavante, a 10 é a do meia armador e por aí vai. Os reservas usavam os números subsequentes.

Na Copa de 1974, a Holanda, para ser coerente com a troca constante de posição dos jogadores do "Carrossel Holandês", inovou em sua numeração. O goleiro era o número 8, o lateral esquerdo levava a 12 às costas; o craque do time (meia), Cruijff, vestia a 14. No Brasil, o Santos criou sua própria tradição ao estabelecer que o lateral direito deveria usar a 4 e o lateral esquerdo ficaria com a 3 (deixando os números 2 e 6 com os zagueiros).

Convenhamos que esses exemplos eram exceções num mar de times de 1 a 11 que respeitavam a ordem sabe-se-lá-por-quem-inventada das posições/numerações. Pois bem, para tristeza dos saudosistas, o futebol moderno foi chegando com força lá pro fim dos anos 90 e mudou isso (e muitas outras coisas, mas foquemos nisso). Se o craque do time veste a 7, não importa se ele fica no banco em um jogo ou supre a ausência do camisa 10 em outro, ele tem que vestir a mesma camisa para que o número seja identificado com sua imagem e mais gente compre as réplicas de sua camisa em lojas oficiais. Surgia a era das camisas personalizadas.

Eu me lembro de já ter visto jogadores desfilando camisas com números 87, 43, 99, 88, 33, 29, 49 e 85 às costas. E se você der uma pesquisada rápida, é capaz de achar outras camisas nada convencionais. Mas, olha, aqui no Brasil, apesar de existir (em algumas situações obrigatórias), vai ser difícil você encontrar alguma com o número 24.

Aguente, estamos quase chegando no assunto principal

 

Libertadores de 2012. Corinthians, que era campeão do torneio continental apenas no PlayStation, jogava a segunda partida das quartas de final, no Pacaembu lotado, contra o forte Vasco da Gama. Em uma jogada errada de Alessandro, o vascaíno Diego Souza rouba a bola e sai sozinho para marcar o gol que eliminaria o time de Parque São Jorge. O goleiro Cássio faz defesa espetacular e classifica o Corinthians (que, em seguida, marcaria com Paulinho). A equipe acabou vencendo sua primeira Libertadores e, meses depois, o Mundial.

Cássio usava a 24.

"Ah, é por isso que ninguém mais veste a 24 no Corinthians? Para lembrar daquela espetacular defesa"?
Não. A explicação é bem mais bizarra e sem sentido.

No Brasil, por um motivo aleatório, o cara que inventou o popular jogo do bicho (João Baptista Viana Drummond, fundador do zoológico do Rio de Janeiro), classificou o grupo que abarca a quadra estipulada ao veado como o 24º, contendo os números 93, 94, 95 e 96 (entenda as quadras e suas complexidades clicando aqui).

Reza a lenda que, nos anos 20, um policial foi prender homossexuais que passeavam próximos à praça Tiradentes, no Rio de Janeiro (ser homossexual era crime), mas falhou, pois quando seus homens iam capturar os indivíduos, eles corriam "como veados". A história teria ido parar na imprensa e se disseminado Brasil afora.

Esses dois causos fazem com que, no Brasil, haja uma ojeriza ao veado e ao número 24 por parte dos machos alfa, replicada pela cultura machista em geral, já que tais elementos são tidos como claros símbolos homossexuais. Quem nunca presenciou "brincadeiras" relacionadas ao personagem veado Bambi com torcedores do São Paulo (que teriam sido de origem mais rica na época da criação do clube), ou ouviu machões dizendo que fizeram "23 anos e meio, não 24"?

O futebol, o grade reduto machista da sociedade brasileira, não poderia aceitar jogadores ostentando o número gay.

"Então por que Cássio usou a 24 na Libertadores"? O campeonato sul-americano estipula numeração fixa que variava de 1 a 25 (atualmente é de 1 a 30). Como Cássio era terceiro goleiro, acabou ficando com o número maldito. Logo após a ascensão ao posto de titular e a gloriosa conquista, o goleiro fez questão de mudar de 24 para 12. Segundo boa reportagem do Uol, de 2015, apenas dois dos 20 times da Série A do Campeonato Brasileiro dispunham de jogadores com a camisa 24 no elenco, justamente por disputarem a Libertadores.

O medo de um número


Parece uma coisa boba, não é? É só um número, que é vastamente utilizado por esportistas ao redor do globo em diversas modalidades, mas que, devido à sua ausência no ludopédio brasileiro, mostra a força do machismo e da homofobia no dito esporte. Será que foi o poder gay da camisa 24 que fez com que Cássio defendesse a bola de Diego Souza na Libertadores de 2012? Certamente que não. Será que ao usar essa camisa o macho alfa passa a odiar futebol e, sei lá, começa a fazer coisas socialmente atribuídas a gays (como se homossexuais não pudessem gostar de futebol)? Também não. Então por que esse medo de um 2 e de um 4 juntos?