Ao senhor Yoshiro

segunda-feira, 17 de março de 2014

Ao senhor Yoshiro








O senhor não lembrava de nada antes de adquirir consciência, uns anos depois de nascer, lá no Japão. Exatamente porque nada, para o senhor, existia. O mundo já estava aí há uns bilhões de anos e se algo de material configurou um entre tantos corpos humanos - partículas, moléculas de carbono pairando na natureza e fixadas nos alimentos e nos corpos antepassados - o senhor há de convir que não havia uma consciência una. Essa coisa que chamamos de alma, que só existe num corpo material a partir de junção de diversos tipos de moléculas, de modo que se obtém um controle sobre as ações do pedaço de carne perecível, não existia. E por não existir, não pensava em existir, não tinha vontade e nem preguiça. Mesmo assim, apesar da chance minúscula, o espermatozoide fecundou o óvulo e o corpo se fez, do nada. É assim que ela surge.

Então, se a vida é bela como alguns dizem, ela tem um lado um tanto difícil também. Infância dura, tentar a sorte no Brasil, trabalhar na lavoura, conseguir emprego num banco, sustentar oito filhos - que tinham que se limpar com jornal porque o papel higiênico era muito caro.

E enquanto o tempo passou, as células foram se reconfigurando na sua cabeça, muitas vezes, sem o senhor querer. Veio o derrame, que transformou o velho japonês rígido em uma pessoa mais humana, mas que também não se lembrava de muita coisa. No seu âmago, o senhor pensou sobre tudo isso? Sobre o tempo que nos enterra um pouquinho a cada segundo?

Noutro dia sonhei que eu estava morrendo. Metiam-me uma bala na cabeça. E poucos segundos antes eu já sabia o que aconteceria, pois estava rendido. Uma leve curiosidade me cutucou, com certeza de que seria saciada em breve. Será como o melhor sexo da vida? Uma explosão rápida? Um adormecer despretensioso? As células se fragmentam. A tal da "alma" some. A decomposição começa, mas já não estamos aí pra ver.

E quem fica... quem fica vai sentir saudades ou alívio e depois de um tempo também vai ter o mesmo destino. O senhor já imaginou quantas pessoas choraram e sofreram por mortes desde que o mundo é mundo?

Se viemos do nada e a nossa vida é pura sorte, o senhor já pensou que nós vamos pro nada também? Vamos ser o pó de estrelas que forma tudo, todos nós. Assim como a vida, senhor Yoshiro, a morte é trágica, mas também é bela.