Mercy Zidane: 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

Avesso?



Eu escrevia, escrevia, escrevia.

Isso durava mais de oito horas por dia.

E era inversamente proporcional. Quanto mais eu escrevia, mais me dava vontade de não falar nada.

Era o último dia do mês. Pagavam-me em espécie, com notas de 3 e 19 reais, que eu relutava, mas acabava tendo que aceitar. Era aquilo ou nada.

E com essas notas, eu só conseguia comprar dois tipos de comida, ambas enlatadas (a de 3 e a de 19 reais). Nenhuma era saborosa, mas davam muito sono. E era o que me restava: chegar em casa, comer e dormir.

Mas nesse dia, eu acordei no meio da noite com o barulho de alguém mexendo na porta. Pensei que fossem os outros moradores da minha casa. Levantei calmamente, passando pelo corredor, em direção ao filtro, para beber um pouco d’água. Foi aí que anunciaram o assalto.

-Fique tranquilo, não queremos suas coisas. Não precisamos de comida enlatada. Queremos apenas mostrar como sua vida é miserável.

Eles eram policiais e riam com prazer enquanto me espancavam com golpes de cassetete e pontapés.
Após um tempo, o chefe, cansado de brincar, decidiu finalizar a questão. Mas não achou a arma. De algum modo ela foi parar na minha mão.

Eu atirei.

Quando apertei o gatilho, muitas outras balas foram disparadas em direção aos policiais. Alguns foram alvejados, mas as balas não se alojavam em seus corpos. Elas percorriam a trajetória em câmera lenta, perfuravam meus inimigos, e tombavam no chão como pequenas bombas, causando explosões curtas. Uma fenda foi aberta no solo.

Ao passar por ela, ninguém precisou me avisar. Eu percebi imediatamente que o avesso estava do lado de fora.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Camila

É uma escolha dura que se faz.
Na infância, com olhos pouco experimentados, mas muito questionadores, percebemos facilmente a falta de sentido do mundo a cada passo que damos, a cada centímetro que crescemos.
E ao dizermos que a vida deveria ser outra, quase não há incentivos para buscarmos transformar o que já está se decompondo. É o contrário: forçam-nos a calar e a fechar os olhos. Fazem resignados malabarismos sem lógica para justificar que não vale a pena gastar a vida para alterar o ritmo fúnebre que a banda toca. É melhor simplesmente acompanhá-lo enquanto as notas desafinadas ressoam no espaço onde o tempo se gasta.
Mas se os olhos insistem em querer ver, eles percebem que é necessário libertar as pupilas cegas de quem não enxerga a própria exploração da qual é vítima. Por oito horas diárias, por anos a fio, por um salário que empurre as dívidas até o fim do outro mês.
“Viver de olhos abertos é muito difícil nos dias de hoje. Feche, feche os olhos, menina. Você pode acabar perdendo o bom emprego, o marido, os filhos, a casa com cachorro e piscina. Você não vai querer perder tudo isso. Você não pode querer perder tudo isso!”.
Levar a vida levando a vida é tudo o que olhos abertos não querem. E não é mais possível  fechá-los. Mesmo se fosse, o que foi absorvido e refletido de forma tão voraz e sincera não desaparecia enquanto houvesse sangue correndo nas veias.
Quem desafia e decide enxergar, pouco vê além nesse mundo de trevas. Há apenas estreitos caminhos que tentamos seguir. Queremos alargá-los com a força dos milhões de escravos da sociedade de hoje (que somos nós) para que possa haver o fim da exploração, da solidão das multidões, de vidas que simplesmente passam sem desenvolver o que poderiam oferecer à humanidade.
Mas não é fácil. Pessoas, traumas, instituições e regras se esforçam para apagar o caminho. Chicoteiam e laçam os desgarrados. Tentam sugar o resto de vida. Murcham o que há de belo. E quem resiste a tudo isso, adequa-se, triste, à falta de sentido.
Há, no entanto, quem não resista.
Perdemos uma dessas pessoas que fazem escolhas corajosamente duras.
E todos nós percebemos seus olhos bem abertos até o último momento.

domingo, 1 de abril de 2012

Coraçãobate

E então você me pede para escrever algo. Mas qualquer algo você não quer e nem eu. Você exige aquele que comova, que dê um rápido nó no cérebro, que derrube a sinapse e ponha imediatamente as lágrimas a correrem.

É desse que eu gosto, mas ele não é o suficiente.

Posso fazê-lo razoavelmente bem (o jogo de palavras), soltando as emoções reais, revelando o que é vergonhoso admitir e promovendo o duelo imaginário de personalidades em crise interna, que são a constituição de mim.

As pessoas se identificam e se emocionam, como quando ouvem uma canção de amor, dessas tantas que já existem.

Mas esse algo, por mais belo e sensível, por mais selvagem e sincero, é apenas uma expressão de como sou constituído socialmente. Por si só, ele não constata que respiro. Uma masturbação emocional não faz meu coração pulsar na história da humanidade.

A mais genuína das emoções precisa ter um pouco de percepção racional para se tonar a paixão que esquenta não só dois corações, mas milhões deles, e com força descomunal.

A tal percepção é simples e gera questionamentos. Como vou estar vivo se enxergo a irracionalidade do mundo, se sinto-a materialmente nos salários rebaixados, na terceirização que humilha, na sádica repressão policial, no aumento da desigualdade, nas demissões em massa, na maquiagem “sustentável” das indústrias, na adaptação da “esquerda”, sem poder alterar tudo isso?

As dúvidas se extinguem quando da observação de lutas, como a dos estudantes da USP, da juventude chilena, dos trabalhadores gregos e egípcios e de tantas outras que abrem caminhos. Elas todas fazem parte de uma só luta e carregam nos ombros a tarefa mais grandiosa da humanidade: o fim da exploração do homem pelo homem.

E a maior das paixões se faz.

É desse algo que falo e que meu tempo exige. É esse algo que pulsa vivo.

O meu com o seu coração bate. E combate.
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Metalinguagem: texto que escrevi para o jornal "O Kula", das Sociais USP