Quadrinhos, massacres da humanidade e a resistência de Cumbe

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Quadrinhos, massacres da humanidade e a resistência de Cumbe



Ler não é uma coisa simples. Você precisa decorar símbolos, regras, exceções, saber interpretá-los, entender seus sons... Depois de tudo isso é que as sequências de palavras e espaços fazem sentido e os significados começam a se ligar para a imaginação promover essa coisa fantástica que é construir imagens mentais do que as letrinhas nos contam. É por isso que ler qualquer coisa é sempre um exercício mental.

Para uma pessoa que está se adaptando a esse universo, seja uma criança banguela ou um velho de careca lustrosa (viu, aposto que você imaginou esses personagens hehe), os quadrinhos são sempre uma boa porta de entrada. Guiam a imaginação, unem o escrito com o símbolo... E então vamos percebendo que ler uma história dessas é tão legal quanto ouvir uma boa conversa "proseada" ou quanto assistir a um filme com um roteiro que te prenda do início ao fim.

Concluímos que quadrinho é uma boa porta de entrada para a leitura, mas é só isso? Lembro de quando meu primo Luis Felipe, o Dida, me emprestou "Batman: Cavaleiro das Trevas", de Frank Miller, em meados dos anos 90. Minha vó disse, referindo-se a Dida, dez anos mais velho que eu: "Parece coisa de quem não teve infância".

Quadrinhos são uma mídia, uma plataforma de comunicação como qualquer outra. A televisão, o cinema e até mesmo os jogos de videogame transmitem informações, cada um a seu modo, e são capazes, com narrativas distintas, de contar histórias. Nos quadrinhos é possível, por exemplo, expor informação visual secundária que pode ser "relida" várias vezes, (o que é bem difícil de acontecer com os filmes devido à velocidade da transmissão; e com livros, que podem deixar a ambientação mais para a imaginação do leitor). Metáforas visuais se tornam possíveis e impactantes (a HQ "Esfinge", de Laerte é um grande exemplo), entre várias outras características singulares desse meio de comunicação.

Tradicionalmente, há muitas histórias em quadrinhos infantis e talvez isso tenha confundido minha sábia avó. Só que, à medida em que o tempo passa, percebe-se o potencial da mídia para falar de coisas mais "adultas" - não apenas de heróis (mesmo havendo histórias desse tipo que são para pessoas mais maduras). No Brasil, já existem selos especializados em "novelas gráficas", que nada mais são do que histórias adultas em quadrinhos, que podem ser tão boas ou melhores que as contadas em ótimos livros ou filmes.

Massacres retratados nos quadrinhos


Fui me interessando cada vez mais pelas "graphic novels" e procurei alguns clássicos. "Maus" de Art Spiegelman, e "Gen", um mangá de Keiji Nakazawa, são obras que abordam dois grandes massacres da humanidade no século XX: o holocausto e a explosão da bomba de Hiroshima, respectivamente. Ambas têm narrativas fluidas e roteiros que prendem absurdamente o leitor. Nas duas, outro ponto fortíssimo dos quadrinhos é explorado: relatos de experiências pessoais. As histórias trazem para o palpável, para o dia a dia de uma família comum, eventos que influenciaram milhares de pessoas e que muitas vezes ficam no abstrato dos números. As memórias imagéticas dos autores são essenciais para as obras e, em termos de estilo, Spiegelman usa metáforas para transformar judeus em ratos e nazistas em gatos; enquanto Nakazawa segue a tradição dos mangás com olhos grandes e frases praticamente cortadas ao meio, explorando canções e muitos momentos emotivos.

Gostei muito, mas após acabar as leituras uma pulga brotou atrás da minha orelha de terceiro-mundista. Esses episódios históricos são terrivelmente lamentáveis, mas já foram contados em diversos meios. Será que não existiria algo publicado sobre os gigantescos crimes cujas repercussões ecoam no Brasil de hoje, como massacres indígenas e a diáspora forçada da escravidão negra?

A resistência de Cumbe


A resposta veio com "Cumbe", de Marcelo D'Salete. As histórias curtas, com pouquíssimos diálogos e traço fino, em preto e branco, remetem ao período colonial brasileiro. A temática que permeia todas as narrativas é a resistência do povo negro que foi separado à força de sua terra e desumanizado. Algumas foram baseadas em documentos históricos e mostram o descontentamento dos escravos em pequenos atos diários ou em grandes revoltas que foram mote para a formação de quilombos.

O estilo do desenho (com muita tinta preta borrada) e a "secura" da falta de diálogos dão a ambientação perfeita de uma sociedade aparentemente calma, mas totalmente imbuída em violência. Com sensibilidade incrível, D'Salete botou o dedo numa ferida que os defensores da "democracia racial" querem apagar, esquecer, deixar pra lá... Ele faz refletirmos sobre como era terrível o que foi feito com o povo negro, ainda mais com as poucas perspectivas que havia para uma vida menos desigual, mas exalta um fator que muitas vezes passa batido nos livros de história: o inconformismo e a revolta sempre presentes na mente e nas atitudes dos então escravizados. Cumbe fez o que poucos filmes e livros ousaram no Brasil.


Moral da história: dê chance aos quadrinhos


Em vez de torcer o nariz, imaginando que é coisa de criança, dê uma chance aos quadrinhos, coisa boa pra ler é o que não vai faltar.
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Metalinguagem: o desenho é meu (Alberto Suzano), baseado baseado nas obras "Maus", de Art Spiegelman, "Gen", de Keiji Nakazawa, e "Cumbe", de Marcelo D'Salete, respectivamente.