Sobre endurecer e perder a ternura

terça-feira, 5 de abril de 2016

Sobre endurecer e perder a ternura

"É preciso endurecer, mas sem perder a ternura jamais."

A conhecidíssima frase é atribuída ao revolucionário argentino Ernesto Che Guevara. Apesar de ser tão famosa quanto a fotografia "Guerrilheiro Heroico", de Alberto Korda, que já ilustrou milhares de camisetas, bonés e outras bugigangas, acredite, é bem difícil encontrar registro sobre a primeira vez em que essa sequência de palavras foi dita ou escrita. Depois de alguma pesquisa, descobri que ela consta no livro "Mi amigo el Ché"‎, de Ricardo Rojo, publicado por Jorge Alvarez, em 1968, quando Che já havia falecido.

Bonita e profunda, a frase (que críticos afirmam não ser de Che - especula-se que foi uma forma de aumentar aura sobre a figura do guerrilheiro) condensa duas ideias principais. Tento explicar, de forma muitíssimo resumida:

Antes da vírgula, mostra como um militante de esquerda precisa "endurecer". Além de expressar a necessidade de preparação para resistir aos donos dos meios de produção e ao Estado (inclusive em momentos extremos, quando tortura e outras medidas repugnantes são utilizadas), evidencia também que é preciso ter disciplina e levar a sério as tarefas do agrupamento político em que se está inserido, senão as coisas não vão se alterar sozinhas (apesar de existir grande peso de questões conjunturais nessa balança). Em outras palavras, endurecer significa ter compromisso, saber se preparar para resistir e dar prioridade à militância - participando de reuniões, atos, e demais tarefas similares -, o que acaba fazendo com que hábitos "comuns" percam relevância e constância na agenda. Contrapartida inevitável.

Na segunda parte, o ensinamento anterior é amenizado. Disciplina é necessária, mas se isso for levado adiante de uma forma exagerada, o pragmatismo extingue o combustível essencial dos que carregam sonhos junto com a bandeira vermelha. Um militante pragmático estabelece relações fetichizadas com trabalhadores (como se eles fossem exemplos em diversos sentidos por formarem o sujeito revolucionário, na visão marxista) e muitas vezes utilitaristas, sem a criação de uma ligação real; lida com companheiros de organização apenas como se fossem números ou se interessa só por algumas funções específicas que eles possam desempenhar para a agrupação (inclusive a de aumentar o prestígio próprio dentro do grupo - o que pode ser uma ponte para a burocratização); desconsidera pressões, anseios e crises individuais de militantes, entendendo-as como coisas menores que atrapalham o grande objetivo de toda a esquerda mundial... E por aí vai.

Criar essa armadura é bem fácil. Quando se entra em uma organização, seja ela um partido político, um grupo de trabalho voluntário, uma associação de bairro, etc., as tarefas do coletivo pressionam as individuais. É normal. O diferencial dos comunas é que o objetivo final seria o "mais nobre de todos": o fim da exploração capitalista. E tudo dentro do partido, absolutamente, se torna tarefa importante e essencial para se chegar a essa meta. Segundo essa visão, carregar uma caixa cheia de livros ou participar de uma reunião sobre conjuntura que pouco vai interferir no rumo da política nacional são ações fundamentais para a construção de uma organização que, se uma conjunção imensa de fatores confluir, pode ajudar a influenciar as massas a superarem o capitalismo num eventual momento revolucionário.

Por tudo isso, a pressão é muito alta, o que favorece o pragmatismo nas relações. Para além da importância exacerbada de tarefas pouco relevantes e dos comportamentos citados dois parágrafos atrás, existem as tentativas de se padronizar o tipo ideal de militante em vez de se explorar o que cada um tem de melhor a oferecer: fulano que não hesita em deixar compromissos pessoais de lado, participa de todos os atos e reuniões sem questionar a importância deles e até dorme menos para realizar tarefas é o exemplo a ser seguido. Quem, por mil motivos, não consegue seguir essa lógica, fica escanteado. Existe, em casos extremos, até uma competição entre quem se doa mais pela organização. Se todo partido de esquerda seguir essa lógica do "militante ideal", o resultado é mais autoisolamento, pois diversos laços afetivos são rompidos e a pessoa, vivendo numa bolha, dificilmente vai conseguir influenciar outras, sejam colegas de trabalho ou amigos.

Num contexto internacional em que partidos de esquerda "radical" (leia-se não governistas e que pensam na superação do capitalismo) não têm a força que já tiveram enquanto forma de organização e são muito pequenos (sem questionar a importância deles enquanto forma de resistência), a tendência é que toda essa militância abnegada, cheia de pressões e de tarefas "importantíssimas", no fim das contas, não seja tão efetiva. E isso frustra muita gente sincera, que está dando a vida para tentar mudar o mundo. Sem apoio, com relações pragmáticas, pouco resultado e muitas vezes pouco estímulo a refletir sobre a sua situação e a situação do partido, a tendência é o indivíduo deixar a militância partidária de lado.

Mais amor?

Para se construir uma organização política orgânica é preciso que haja militância (como mostrou a disputa entre mencheviques e bolcheviques no congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo de 1903), caso contrário, alguns poucos atuam enquanto outros apenas apoiam ou financiam (o que acabou acontecendo com antigos partidos de esquerda que hoje nem lembram de suas bandeiras). E, claro, num partido político, a política é o mais importante e ela deve nortear a organização a partir de princípios e da atuação prática em lutas cotidianas.

Postas essas duas ponderações, digo que não, não é apenas mais "ternura guevarista" que vai colocar os partidos de esquerda brasileiros ou de qualquer outro país num rumo de crescimento, como eu e muitos outros gostariam... A política (que pode ser de sectária a reformista), com princípios e pontos de programa negociáveis ou não e as diferenças entre diversos propostas de poder são determinantes, assim como a atuação prática de cada organização.  Mas, sem dúvidas, a ternura pode ajudar.

Quem faz o partido existir são as pessoas que o compõem. Enquanto organizações de esquerda tiverem relações internas pragmáticas e forem máquinas de moer militantes (muitos ficam depressivos por não darem conta de tarefas e não se enquadrarem em modelos de atuação) dificilmente elas conseguirão se expandir a um número razoável, o que já é uma contradição em si... Sem contar o absurdo principal, que é perpetuar um tipo de relação interpessoal totalmente diferente do qual se luta para que toda a sociedade tenha, em mundo sem exploração de uma classe sobre outra.
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Metalinguagem: esse texto se baseia em minha experiência partidária e no que conheço de algumas organizações de esquerda brasileiras. Agradeço as sugestões do parceiro André Bof.