Imagine-se com oito ou nove anos de idade, acordando cedo no sábado de manhã para assistir, via tevê de tubo sem controle remoto, a algum imperdível desenho no Sábado Animado, do SBT. Um velho mas sempre engraçado Tom & Jerry se alternava com O Fantástico Mundo de Bob; havia também Os Anjinhos e, claro, dava para mudar de canal, esperar outros dias e horários e pegar alguma das reprises de TinTin na Cultura, ver animes na Manchete ou uma ou outra coisinha na Globo (eu adorava o desenho do Super Mario Bros que passava bem cedinho em dias de semana).
Mas se existissem estatísticas sobre a quantidade de episódios de desenhos animados exibidos nas tevês tupiniquins com temáticas como natais com neve, dias de ação de graças, dia das bruxas, brincadeiras com o tal "bundalelê" (em que o indivíduo mostra a bunda como provocação), casas sem portões e mais um monte de outras festas, situações ou hábitos que passam muito longe da realidade de uma criança brasileira, certamente esse índice seria exorbitante. Apenas os programas live-action da Cultura, como Rá-Tim-Bum, Cocoricó, e Castelo diminuiriam essa "goleada".
Não acho que os gringos são estúpidos e só produzem lixo enlatado - considero inclusive que existe muitíssima coisa boa -, mas essa grande lacuna na animação brasileira é preenchida pelas obras estrangeiras... E isso tem impacto no nosso autorreconhecimento, tanto em termos culturais, quanto nos problemas pelos quais passamos como habitantes do país. Bom, isso acontecia na minha época, já que toda criança ficava horas e horas em frente à tevê. Talvez hoje em dia, com internet e smartphones, a coisa seja um pouco diferente. Mesmo assim, crianças gostam de desenhos, independentemente da mídia que os transmita. Seja via tevê de tela plana ou espertofone baratinho,"Irmão do Jorel", criado por Juliano Enrico, e exibido e produzido pelo Cartoon Network, em parceria com o Estúdio Copa, é um contraponto ao que está estabelecido, pois é um raro seriado de animação brasileiro que, ainda por cima, bota o dedo em algumas feridas, com foco no humor e dispõe de fantástica qualidade técnica.
Bebendo na fonte de desenhos mais recentes do próprio canal estadunidense que misturam a estética da fofura com muitos elementos nonsense (vide Flapjack e Hora de Aventura), a série conta a história de Irmão do Jorel, um molequinho mirrado que é irmão mais novo de uma lenda: o adolescente Jorel, com seus longos cabelos esvoaçantes que arrebatam corações e a admiração de todos na escola Pônei Encantado. A popularidade de Jorel é tamanha que ninguém sabe ao certo o nome de seu irmão mais novo. A família, tipicamente de classe média brasileira, tem duas avós, um irmão do meio, o pai e a mãe, além dos dois já citados - você pode ver mais detalhes sobre cada um dos personagens aqui.
Eu poderia falar sobre coisas muito legais e engraçadas que são tema central ou pano de fundo dos 26 episódios viajados e emocionantes já lançados até o momento (a segunda temporada está em produção), como festa junina, anel apito, filtro de barro, figurinhas, caneta de 250 cores, fixação por um herói tosco que mistura Steven Seagal com Sidney Magal (virando Steve Magal), os incríveis Latenagers (uma banda psicodélica do pai da família Jorel, estilo Secos e Molhados) e a adoração das crianças pelo anime Microwave Warriors (referência clara a Cavaleiros do Zodíaco), mas vou focar em duas questões. Sigam-me os bons:
Relação com a memória da ditadura militar
No Brasil, apesar de Bolsonaro ter bizarramente louvado o coronel torturador Brilhante Ustra na votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara, e de um jornal de grande circulação já ter falado em ditabranda ao se referir ao período da ditadura militar no país, tivemos um regime que calou a população por décadas, torturou e matou centenas de pessoas. É algo importante e que deixou marcas na geração que presenciou o processo, tendo seus ecos sentidos até hoje. Em "Irmão do Jorel", Seu Edson, o pai da família, é um ex-militante revolucionário, que tentou lutar contra a ditadura fazendo uma peça infantil chamada "Um Urso Numa Casquinha de Noz" (risos).
Quem estava no poder durante esse período, no universo da animação? Os palhaços.
Liderados por Hambozo (uma mistura de Rambo com Bozo?), os palhaços são proibidos de sorrirem ou de se divertirem enquanto contam piadas. Apesar da maquiagem peculiar da profissão, utilizam trajes militares e precisam obedecer a uma rígida hierarquia, mostrada no episódio 16, quando Irmão do Jorel é recrutado para se tornar palhaço profissional. Todo o tipo de força repressora da animação é liderada por Hambozo, inclusive a polícia (menção à Polícia Militar, que é herança da ditadura?). Tortas e flores d'água são as armas dos tristes palhaços, que querem levar uma alegria burocrática e controlada à população.
Questionamento da heteronormatividade
No episódio 25, Irmão do Jorel e sua melhor amiga Lara se interessam em participar de uma competição de roller derby (uma patinação artística no gelo sem gelo e sem arte, segundo a personagem Samantha). Por ser homem, Irmão do Jorel é proibido de integrar o time das "Trituradoras de Sonhos Mortíferos". Mesmo assim, o garoto se veste de mulher e entra na vaga de Lara, que havia sido expulsa pelo juiz (também um palhaço) no meio da disputa, fazendo sua equipe vencer a grande competição. Todos no gigantesco estádio ficam estupefatos quando se anuncia a fraude - vozes se levantam indignadas com o fato de Irmão do Jorel estar usando saias; mesmo assim, o moleque ergue novamente o troféu e um anônimo na plateia grita: "Não importa! É isso aí, cara!" contagiando a arena e levando o pequeno à glória.
Ao longo do episódio, Irmão do Jorel tenta, constrangido, esquecer dos patins e jogar futebol, que é coisa de macho. Antes, quando Lara diz que ele é frangote por não querer passear de bicicleta longe de casa, ele pergunta se ela quis dizer que ele é "mulherzinha". É então que Lara dá uma grande lição:
Imagem: Cartoon Network Brasil
Em seguida, a conversa se segue e Lara argumenta que é possível um menino não gostar de jogar futebol e uma menina ser apaixonada pelo esporte bretão.
Dedo na ferida
Para além de toda ambientação em território brasileiro, com objetos e expressões mais comuns no dia a dia de uma parcela das crianças do país (lembremos que a produção é baseada no universo de uma família de classe média), o seriado se torna extremamente inovador ao tocar em temas que são tabu, ainda mais por se tratar de uma animação infantil.
O Brasil tem dois recordes internacionais negativos: é o país que tem uma das polícias mais assassinas do mundo e é o campeão de assassinatos de homossexuais. "Irmão do Jorel", ao abordar esses temas, pode facilitar a conversa de crianças com pais, professores e colegas sobre a ditadura militar e a herança deixada por esse doloroso processo (como a PM); e sobre preconceito, ódio e bullying que vêm da homofobia tão presente em nossa cultura.
Não estou pintando o desenho de vermelho ou dizendo que é a coisa mais progressista do mundo (tem gente que vai encontrar reforços de estereótipos onde outros verão apenas ironia, em certos episódios), mas é uma produção bem divertida, que ocupa essa lacuna de séries animadas sobre o Brasil e que acertou absurdamente em tocar em temas tão polêmicos.
Se você der uma chance a "Irmão do Jorel", capaz de se viciar mais que seus filhos pequenos.