Jogar videogame é só uma diversão alienada?

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Jogar videogame é só uma diversão alienada?



As horas gastas em frente a uma tela de TV, de computador ou de celular para jogar um game geralmente são tidas como "perdidas", por mais divertidas que tenham sido desde a infância. Mesmo alcançando relativa (e progressiva) popularidade desde os anos 80, os videogames ainda não detêm a nobreza dos filmes ou dos livros como forma de obtenção de entretenimento e conhecimento de modo impessoal (e geralmente, mas nem sempre, solitário). Faz sentido que os jogos eletrônicos sejam tidos como mera diversão alienada?

Diferentes exercícios

Se você abre um livro de literatura, por mais mal escrito que seja (a partir da subjetividade de cada um - lembremos que gosto é relativo), seu cérebro vai formar imagens mentais e extrair conceitos a partir da narrativa - é um exercício. Ao assistir a um filme, esse  tipo de exercício não ocorre, pois as imagens já são dadas - o que não exclui que haja absorção de informação por meio de símbolos visuais, o que pode provocar reações e emoções diferentes do que ocorre quando se tem o contato com a palavra escrita (lembrando que imagem e palavra não estão em oposição, como diria Giovanni Sartori em Homo Videns). E, claro, tanto no livro quanto no filme, o conteúdo que é expresso pelas narrativas pode ser apreendido para imediata ou posterior reflexão.

Num jogo de videogame qualquer, ao menos um jogador está "eletronicamente inserido" na tela. Você não pode simplesmente ficar inerte (até pode, mas não vai ter graça) - é preciso interagir, mesmo que seja para rebater a bolinha para o outro lado, como no clássico Pong. Para além das informações visuais que também ocorrem em filmes, há aí um exercício cognitivo - a sua ação cerebral faz mover os dedos das mãos de certa forma para que ocorra reação dentro da tela. Há, inclusive, alguns estudos que dizem que jogar videogame ativa certas áreas do cérebro.

Características do videogame

Com o avanço tecnológico e de programação dos jogos que se deu com o passar das décadas, começou a ser possível criar mais do que apenas operações simples e repetitivas a partir do controle de enormes amontoados de pixels em jogos curtos - abriu-se um caminho para armazenamento de mais arquivos e para que histórias pudessem ser contadas, dando mais características cinematográficas aos games. Exemplo famoso é um dos vários jogos da série Metal Gear, que tem uma cutscene (espécie de pequeno filme dentro do jogo, para dar liga à história) com nada menos que 40 minutos. Até os jogos de futebol atuais como Fifa e PES possuem modos de jogo com cutscenes sobre bastidores das partidas em modos como o "carreira".

Também foi possível o desenvolvimento de vários gêneros (luta, aventura, plataforma, esporte, simulação, RPG, tiro, exploração, educativo, etc.) e de inovações em jogabilidade (que é a experiência do jogador com o jogo), não apenas em roteiro. Tudo isso sem contar a interação local e virtual entre pessoas que os jogos eletrônicos proporcionam e os desdobramentos disso, como encontros, brigas, trabalho em equipe, etc.

Exemplos

Games de mundo aberto, como GTA, possibilitaram a exploração de um grande mapa com vários elementos interativos sem a necessidade de seguir as missões oficiais que os próprios criadores do game indicam - o jogador pode encarnar CJ em GTA San Andreas e ficar simplesmente comprando casas, adquirindo carrões e, claro, tacando o terror em Los Santos. Outro exemplo é Minecraft, o jogo em que se pode criar tudo a partir de blocos - desde reproduções de monumentos que existem na vida real até "jogos dentro do jogo", que podem variar em termos de complexidade. Mais um estilo, o point-and-click também mostra outra experiência: o jogador não precisa fazer movimentos rápidos com botões ou controlar o caminho do personagem, basta escolher as decisões a serem tomadas - é um meio de participar da história de forma bem mais interativa do que no antigo programa da Globo Você Decide.

Mesmo com os pontos citados logo acima, é bem provável que a maioria dos jogos já lançados em todo o mundo até hoje tenha histórias de "sequestro de princesas" em que "o escolhido" precisa enfrentar milhares de desafios sem sentido para restaurar a paz e a harmonia na sociedade - ou seja, nada mais que desculpas para a porradaria comer solta. Tirando o fato de que mesmo esses jogos podem ser divertidos e, como vimos, exercitarem a mente, do mesmo modo como a tecnologia evoluiu, as ferramentas de criação também estão se tornando mais democráticas. Disso resultam os jogos indies (ou independentes) que não são feitos necessariamente com preocupações de agradar ao "público geral" com fórmulas nada inovadoras para vender milhões; justamente por não terem essas amarras (alguns são até financiados coletivamente), eles podem levar a experiências reflexivas.

The Stanley Parable é um game que te põe na pele de um trabalhador de escritório que passa por um dia diferente no trabalho, já que os demais colegas não apareceram para a labuta. Parece bobo, não é? Mas o jogo consegue questionar o trabalho alienado, as vazias conquistas que uma vida "comum" proporcionam e até te desafia a não reproduzir essa lógica.

A questão não é a plataforma, é a criação

Ninguém, atualmente, vai jogar um game mainstream e aprender profundamente história ou geografia, mas já existem jogos que usam reconstruções históricas (claro, sempre a partir de certa visão de mundo) como pano de fundo para a narrativa principal, como Valiant Hearts, que retrata eventos da Primeira Guerra Mundial; há jogos como Kerball, que explicam noções de física a partir da construção de foguetes; e outros como The Wolf Among Us em que é possível refletir sobre a moralidade das ações e as noções de justiça.

"Então está tudo uma maravilha no mundo dos jogos"? Longe disso. Faltam visões e representações que não sejam europeias, estadounidenses e japonesas (até gamers brasileiros fazem jogos em inglês para facilitar a aceitação); faltam games "de esquerda", apesar de haver muitos jogos que criticam o modo como a sociedade funciona hoje; há enorme machismo contra gamers mulheres; existe ainda a hipersexualização das figuras femininas; e uma série de outros problemas, mas tudo isso está muito mais ligado a quem pensa os jogos, não às plataformas em si.

Videogames não são perda de tempo, assim como TV não é sinônimo de porcaria e livros não são iguais a conhecimento. As plataformas não têm vida própria, elas precisam de sentido e quem dá o sentido é quem cria o conteúdo. A grande indústria domina a produção (em que, apesar de tudo, há coisas bem boas), mas abre-se cada vez mais caminho para jogos independentes, que podem ousar mais e explorar esse ainda novo universo, mesmo que em pequenos passos.