Imagine se alguém previsse, em setembro de 2014, a partir do preciso método da leitura de uma borra de café na caneca, que, em agosto do ano seguinte, algumas regiões nobres de grandes cidades do Brasil ouviriam estridentes panelaços antes da exibição do programa do partido do governo na rede aberta de televisão. E mais: imagine que, a essa altura, o(a) mandatário(a) brasileiro(a) já teria feito grandes esforços para flexibilizar direitos conquistados pelos trabalhadores há décadas. Por fim, imagine que, devido à baixa aprovação do governo em pesquisas populares e à crise na Câmara, a Rede Globo defenderia, no editorial d'O Globo e em pleno icônico Jornal Nacional, a estabilidade no Planalto para o Brasil superar a crise, esfriando boatos de impeachment.
Muita gente, ao ouvir a previsão, diria que o vidente e a borra eram apenas petistas torcendo para que o país entrasse numa terrível espiral autodestrutiva com a vitória de Aécio Neves (PSDB) - que só poderia se encerrar a partir da renúncia do sobrinho de Tancredo, atendendo ao clamor das ruas pela volta de Lula.
Pois bem, voltemos à realidade. Como se sabe, a vencedora do pleito foi Dilma Rousseff (PT)... E mesmo assim todos os fatos descritos no primeiro parágrafo aconteceram. Seria então a borra uma tucana enrustida? Não, a polarização ferrenha entre PT e PSDB, que costuma explodir nos períodos eleitorais é que está caduca. As diferenças entre tais partidos são bem menores do que muita gente pensa.
Programa tucano
Se Aécio tivesse vencido a eleição de 2014, é provável que os direitos trabalhistas também fossem futucados - e muitos eleitores petistas bradariam o absurdo. Agora, com Dilma fazendo o trabalho sujo para "o Brasil avançar", os mesmos se calam, condescendentes. Até a Rede Globo percebeu que não compensaria forçar o desgaste no Planalto, correndo o risco de uma acentuação da crise no país, ainda mais para um governo que está seguindo à risca um programa que poderia muito bem ser chamado de tucano (vide exemplo já citado das negociações da Agenda Brasil).
Só os panelaços de gente rica é que parecem esquisitos, já que, imagino eu, esse método seja mais comum em manifestações de quem não tem o que comer. Mesmo assim, não é possível dizer que apenas os abastados estejam insatisfeitos com o governo petista - as próprias pesquisas de popularidade do governo apontam índices de rejeição que abrangem 71% da população. O problema é esse pessoal trabalhador e precarizado pensar que propostas como a do PSDB vão representar alguma solução real para a situação de suas vidas.
O "fla-flu" eleitoral entre "petistas comunas" x "tucanos coxinhas" encobre o que PSDB e PT têm em comum (alianças fortíssimas com empresários, corrupção, agenda de flexibilização de direitos) e estigmatiza perfis políticos, como se todo esquerdista fosse petista e não pudesse criticar e até odiar o partido, e como se todo eleitor tucano fosse coxinha (o que não é verdade, pois só a classe média e os ricos não possuiriam votantes suficientes para vencer ou disputar acirradamente um pleito). Uma pena os partidos realmente de esquerda não terem grande relevância no cenário político, tempo de TV e influência significativa na base de trabalhadores para alardear essas questões e propor alternativas.