Após derrota na Copa, há uma crise no futebol brasileiro. Qual seria a saída por fora do “futebol negócio”?
A Copa do Mundo chegou ao Brasil com estádios superfaturados, empreiteiros enchendo os bolsos, remoções de famílias, greves, manifestações e muita repressão. Enquanto isso, dentro de campo, a seleção pentacampeã passou vexame com a histórica goleada sofrida ante a Alemanha, na semifinal do torneio: um sonoro e inédito 7x1 – a maior derrota do Brasil em 20 edições da Copa do Mundo.
O otimismo acabou em crise futebolística.Não apenas a comissão técnica e os jogadores da seleção foram questionados, mas também os rumos do futebol brasileiro como um todo. Há uma série de pontos falhos, como a pouca atenção dada às categorias de base de clubes e da seleção, a venda prematura de jovens talentos ao exterior, a defasagem dos técnicos, a péssima organização dos campeonatos nacionais, etc.
Enquanto a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que deveria lidar com muitas dessas questões, só tem olhos para os amistosos internacionais e patrocínios milionários da seleção (só em 2014 serão R$ 300 milhões arrecadados), um grupo de jogadores se reuniu desde 2013 para confrontar decisões arbitrárias da entidade (que tem forte parceria com a Rede Globo), sob o nome de Bom Senso Futebol Clube. Essa reunião de atletas foi mais um reflexo do novo momento que o país atravessa em termos de politização.
Os jogadores organizados defenderam medidas básicas, como redução do número de jogos, teto salarial, calendário unificado, partidas espalhadas ao longo do ano para divisões inferiores, melhores horários para as disputas (que não fossem submetidas ao que é exigido por emissoras) e outras.
Com alguns protestos simbólicos, o grupo ganhou notoriedade. A derrota brasileira no campo fez a presidente Dilma Roussef (PT) decidir mostrar serviço para tentar se desvincular da imagem do fracasso canarinho em época eleitoral. Após seu ministro do esporte dizer que o futebol nacional teria uma “intervenção leve”, a mandatária convocou atletas do Bom Senso para uma conversa no Palácio do Planalto, em Brasília, no fim de julho.
Liderados pelo ex-corintiano Paulo André, que atualmente joga na China, os jogadores defenderam a não aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE), que isenta os dirigentes de clubes das consequências civil e penal caso cometam crimes; e sugeriram a democratização da CBF, com mandatos de dirigentes limitados a quatro anos, dando direito de voz e voto a atletas, treinadores, árbitros e clubes pequenos filiados à entidade. Também propuseram uma confederação “menos política e mais técnica”, com investimento em capacitação de treinadores, profissionalização do futebol feminino e de areia, abertura para debate e implementação de um novo calendário, entre outras medidas.
No entanto, quando o assunto foi a possível estatização da CBF (que é uma entidade privada, apesar de gerir um bem público), os jogadores do Bom Senso, como citado em artigo de Paulo André na Folha de S. Paulo, no dia 18 de julho, disseram: “Sabíamos que estatizar o futebol não era, nem de perto, a solução para os nossos problemas”. Certamente que uma estatização do esporte sem participação dos atletas, árbitros e comissões técnicas nas tomadas de decisão pouco adiantaria. Mas existe realmente a possibilidade de democratizar, pelos métodos propostos pelos jogadores, uma entidade tão corrupta quanto a CBF?
Dificilmente a estrutura de poder seria alterada sem uma mobilização massiva, pois o poder de decisão sobre um campeonato vale muito dinheiro para que CBF, Globo e cartolas de clubes o dividam com um jogador semi-amador.
Mas o ideal não seria que todos os jogadores profissionais, do goleiro de um time da Série D a um centroavante do clube campeão da Série A, ganhassem o mesmo salário? E se pudessem ter exatamente os mesmos poderes decisórios, como possibilidade de debater e votar um calendário de jogos para o ano todo?
Num terreno como o do futebol brasileiro, que parece estar estacionado na ditadura militar (o atual presidente da CBF, José Maria Marin, foi deputado estadual pela Aliança Renovadora Nacional - Arena -, partido da situação na época dos “Anos de Chumbo”), o Bom Senso, apesar de parecer dar passos democráticos, não representa a totalidade dos jogadores, principalmente a parcela mais pobre deles (82% dos jogadores profissionais recebem cerca de dois salários mínimos). As únicas alternativas formuladas para os atletas menos badalados são a criação da série E e o aumento do número de jogos nas séries C e D.
Não há propostas de organização em sindicatos de atletas, em que a representação da categoria seria mais justa e todos poderiam opinar a respeito.
Não é por meio de uma reforma numa instituição privada, com interesses de empresas por todos os lados, que as grandes disparidades salariais e a falta de organização no futebol seriam superadas. A estatização foi rechaçada pelos atletas do Bom Senso, mas não faria mais sentido que jogadores, técnicos, profissionais da área e toda a população participassem de processos públicos de tomada e gerenciamento do esporte? Isso seria impossível com a gestão da “paixão nacional” pela CBF.
E mesmo que o futebol fosse estatizado pela base de forma democrática, em um processo que dependeria da mobilização de vários setores da sociedade, uma pergunta simples colocaria muita coisa em xeque: para que serve o esporte? Antes de ser a forma de sobrevivência de certos indivíduos, ele é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da educação do corpo e da saúde pública, além de servir para divertir.
Dessa forma, deveria ser uma prática garantida a toda a população - o que está longe de ocorrer hoje em dia (vide a falta de quadras e campos em periferias). Qualquer um, nas suas horas livres, deveria ter direito de se associar a grupos de prática esportiva e poder utilizar equipamentos públicos para isso. Numa sociedade sem desigualdades, em que todos tivessem mais horas de lazer e o Estado garantisse o acesso às práticas lúdicas, o esporte tenderia a deixar de ser o que é hoje (um negócio milionário que forma poucos superatletas com gordas contas bancárias, além de ter uma maioria que recebe uma miséria e uma infinidade que não consegue sequer praticá-lo), tornando-se simplesmente uma prática lúdica e não profissional, voltada para a educação física e para o divertimento.
É bem difícil refletir sobre como seria se o futebol não dependesse do lucro de emissoras, bancos e outras empresas para existir. Como os times se dividiriam se não houvesse diferença de renda entre agremiações? Por bairro? Por estilo de jogo?
Nos primeiros anos após a Revolução Russa de 1917, a prática esportiva no país começou a se massificar e surgiram, de forma natural, grandes atletas. Diferentemente do que ocorre hoje, quando algumas promessas são “pinçadas” e submetidas a exaustivas rotinas de treinos, que levam a diversas lesões. Até os dias atuais, países do Leste Europeu e Cuba colhem alguns frutos em competições internacionais, por incrível que pareça, devido ao amadorismo resultante da massificação esportiva.
A garantia estatal das condições para a livre prática esportiva, sob controle da população, pode ser uma resposta para os diversos problemas enfrentados pelo futebol brasileiro. É preciso pensar o que fazer para que o “futebol negócio” se transforme simplesmente em “futebol prazer” e “futebol educação".
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Metalinguagem: escrevi este texto para a edição 107 do jornal Palavra Operária, da Liga Estratégia Revolucionária. Contei com importantes contribuições de camaradas para chegar à versão final. Apesar de a ideia inicial ter sido apenas levantar alguns aspectos da "crise futebolística", o artigo me fez pesquisar e pensar num bocado de coisas.