Mercy Zidane: julho 2014

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Quais os limites do Bom Senso FC?

Após derrota na Copa, há uma crise no futebol brasileiro. Qual seria a saída por fora do “futebol negócio”?


A Copa do Mundo chegou ao Brasil com estádios superfaturados, empreiteiros enchendo os bolsos, remoções de famílias, greves, manifestações e muita repressão. Enquanto isso, dentro de campo, a seleção pentacampeã passou vexame com a histórica goleada sofrida ante a Alemanha, na semifinal do torneio: um sonoro e inédito 7x1 – a maior derrota do Brasil em 20 edições da Copa do Mundo.

O otimismo acabou em crise futebolística.Não apenas a comissão técnica e os jogadores da seleção foram questionados, mas também os rumos do futebol brasileiro como um todo. Há uma série de pontos falhos, como a pouca atenção dada às categorias de base de clubes e da seleção, a venda prematura de jovens talentos ao exterior, a defasagem dos técnicos, a péssima organização dos campeonatos nacionais, etc.

Enquanto a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que deveria lidar com muitas dessas questões, só tem olhos para os amistosos internacionais e patrocínios milionários da seleção (só em 2014 serão R$ 300 milhões arrecadados), um grupo de jogadores se reuniu desde 2013 para confrontar decisões arbitrárias da entidade (que tem forte parceria com a Rede Globo), sob o nome de Bom Senso Futebol Clube. Essa reunião de atletas foi mais um reflexo do novo momento que o país atravessa em termos de politização.

Os jogadores organizados defenderam medidas básicas, como redução do número de jogos, teto salarial, calendário unificado, partidas espalhadas ao longo do ano para divisões inferiores, melhores horários para as disputas (que não fossem submetidas ao que é exigido por emissoras) e outras.

Com alguns protestos simbólicos, o grupo ganhou notoriedade. A derrota brasileira no campo fez a presidente Dilma Roussef (PT) decidir mostrar serviço para tentar se desvincular da imagem do fracasso canarinho em época eleitoral. Após seu ministro do esporte dizer que o futebol nacional teria uma “intervenção leve”, a mandatária convocou atletas do Bom Senso para uma conversa no Palácio do Planalto, em Brasília, no fim de julho.

Liderados pelo ex-corintiano Paulo André, que atualmente joga na China, os jogadores defenderam a não aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE), que isenta os dirigentes de clubes das consequências civil e penal caso cometam crimes; e sugeriram a democratização da CBF, com mandatos de dirigentes limitados a quatro anos, dando direito de voz e voto a atletas, treinadores, árbitros e clubes pequenos filiados à entidade. Também propuseram uma confederação “menos política e mais técnica”, com investimento em capacitação de treinadores, profissionalização do futebol feminino e de areia, abertura para debate e implementação de um novo calendário, entre outras medidas.

No entanto, quando o assunto foi a possível estatização da CBF (que é uma entidade privada, apesar de gerir um bem público), os jogadores do Bom Senso, como citado em artigo de Paulo André na Folha de S. Paulo, no dia 18 de julho, disseram: “Sabíamos que estatizar o futebol não era, nem de perto, a solução para os nossos problemas”. Certamente que uma estatização do esporte sem participação dos atletas, árbitros e comissões técnicas nas tomadas de decisão pouco adiantaria. Mas existe realmente a possibilidade de democratizar, pelos métodos propostos pelos jogadores, uma entidade tão corrupta quanto a CBF?

Dificilmente a estrutura de poder seria alterada sem uma mobilização massiva, pois o poder de decisão sobre um campeonato vale muito dinheiro para que CBF, Globo e cartolas de clubes o dividam com um jogador semi-amador.

Mas o ideal não seria que todos os jogadores profissionais, do goleiro de um time da Série D a um centroavante do clube campeão da Série A, ganhassem o mesmo salário? E se pudessem ter exatamente os mesmos poderes decisórios, como possibilidade de debater e votar um calendário de jogos para o ano todo?

Num terreno como o do futebol brasileiro, que parece estar estacionado na ditadura militar (o atual presidente da CBF, José Maria Marin, foi deputado estadual pela Aliança Renovadora Nacional - Arena -, partido da situação na época dos “Anos de Chumbo”), o Bom Senso, apesar de parecer dar passos democráticos, não representa a totalidade dos jogadores, principalmente a parcela mais pobre deles (82% dos jogadores profissionais recebem cerca de dois salários mínimos). As únicas alternativas formuladas para os atletas menos badalados são a criação da série E e o aumento do número de jogos nas séries C e D.
Não há propostas de organização em sindicatos de atletas, em que a representação da categoria seria mais justa e todos poderiam opinar a respeito.

Não é por meio de uma reforma numa instituição privada, com interesses de empresas por todos os lados, que as grandes disparidades salariais e a falta de organização no futebol seriam superadas. A estatização foi rechaçada pelos atletas do Bom Senso, mas não faria mais sentido que jogadores, técnicos, profissionais da área e toda a população participassem de processos públicos de tomada e gerenciamento do esporte? Isso seria impossível com a gestão da “paixão nacional” pela CBF.

E mesmo que o futebol fosse estatizado pela base de forma democrática, em um processo que dependeria da mobilização de vários setores da sociedade, uma pergunta simples colocaria muita coisa em xeque: para que serve o esporte? Antes de ser a forma de sobrevivência de certos indivíduos, ele é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da educação do corpo e da saúde pública, além de servir para divertir.

Dessa forma, deveria ser uma prática garantida a toda a população - o que está longe de ocorrer hoje em dia (vide a falta de quadras e campos em periferias). Qualquer um, nas suas horas livres, deveria ter direito de se associar a grupos de prática esportiva e poder utilizar equipamentos públicos para isso. Numa sociedade sem desigualdades, em que todos tivessem mais horas de lazer e o Estado garantisse o acesso às práticas lúdicas, o esporte tenderia a deixar de ser o que é hoje (um negócio milionário que forma poucos superatletas com gordas contas bancárias, além de ter uma maioria que recebe uma miséria e uma infinidade que não consegue sequer praticá-lo), tornando-se simplesmente uma prática lúdica e não profissional, voltada para a educação física e para o divertimento.

É bem difícil refletir sobre como seria se o futebol não dependesse do lucro de emissoras, bancos e outras empresas para existir. Como os times se dividiriam se não houvesse diferença de renda entre agremiações? Por bairro? Por estilo de jogo?

Nos primeiros anos após a Revolução Russa de 1917, a prática esportiva no país começou a se massificar e surgiram, de forma natural, grandes atletas. Diferentemente do que ocorre hoje, quando algumas promessas são “pinçadas” e submetidas a exaustivas rotinas de treinos, que levam a diversas lesões. Até os dias atuais, países do Leste Europeu e Cuba colhem alguns frutos em competições internacionais, por incrível que pareça, devido ao amadorismo resultante da massificação esportiva.

A garantia estatal das condições para a livre prática esportiva, sob controle da população, pode ser uma resposta para os diversos problemas enfrentados pelo futebol brasileiro. É preciso pensar o que fazer para que o “futebol negócio” se transforme simplesmente em “futebol prazer” e “futebol educação".
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Metalinguagem: escrevi este texto para a edição 107 do jornal Palavra Operária, da Liga Estratégia Revolucionária. Contei com importantes contribuições de camaradas para chegar à versão final. Apesar de a ideia inicial ter sido apenas levantar alguns aspectos da "crise futebolística", o artigo me fez pesquisar e pensar num bocado de coisas.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

A equilibrista de angústias

Não tinha medo da morte, ou apenas dela. Morrer, em muitas situações, poderia ser reconfortante. Um alívio; um momento em que a dor cessa e se transforma num "quase prazer". O que a angustiava era o longo caminho de sofrimento até a ruptura. Tinha medo de picos de dor que seriam tão fortes a ponto de transformarem a morte na escolha mais fácil.

Percebeu sua fobia quando lia sobre histórias de grupos que tiveram que renunciar à vida que levavam e foram obrigados a mergulhar numa nova realidade, sobrevivendo com pouca perspectiva de retomada ou de mudança.

Então imaginava o sentimento individual nesse contexto. Sentia a dor de um índio brasileiro do período de 1500 após a captura por portugueses, sendo obrigado a comungar, aprender uma nova língua, trabalhar para ter menos do que a natureza lhe dava antes e a pensar que a vida toda seria batalhar para criar um milagre, oposto pelo vértice à maldição da chegada européia.

Pensava em alguma negra insurreta de um quilombo nordestino do século XVII ou XVIII. Tirada de seu continente, revoltou-se após muitas chibatadas, mas se via cercada por tropas imperiais. Por mais que lutasse e conseguisse sobreviver, sabia que carregaria a dor da morte de irmãos e da saudade de uma existência que não tinha mais como voltar.

Suava frio e se perguntava o que faria em tais situações. Desconfiava, mas não sabia.

Olhava para si. Tinha que agradecer as oportunidades que tivera e que muitos sonhavam ter. Mas via, de um lado, as oito horas de trabalho, as obrigações e cobranças por toda parte, mesmo de quem a amava. Do outro, percebia que a infância perdera a cor gostosa que a memória costuma dar e que seus prazeres atuais eram vazios, mesquinhos e de difícil superação. A luz, lá no fim do túnel, um dia viria, mas conseguiria ela suportar uma existência sem sentido? Anos a fio de segundos insossos desfilando a sua frente pesavam e causavam desequilíbrio. Ela chorava.

Às vezes, para não cair, jogava coisas para cima enquanto andava sobre a corda bamba. Noutras, quando enxergava as cores, segurava-se com a força de seus braços e pernas à linha mestra. Mas esses momentos eram curtos e um dos lados ia ficando novamente mais pesado a ponto de fazer a respiração doer. O suor frio voltava. Respirava fundo, tentava secar as lágrimas e não pensar no que sabia que iria aparecer em sua mente.

Nessas horas, a dor a fazia correr mais livre. Enxergava o caminho, mas não era ele o que a estimulava. Apenas não se importaria com a queda.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Um pouco sobre esquerda, estética e conteúdo


Quem começa a militar em partidos e organizações de esquerda, costuma o fazer por uma mistura de convencimento racional e paixão pela vontade de mudar o mundo.

É uma relação dialética entre as duas coisas: não dá para se convencer sem sentir a gana de construir um futuro diferente na atuação diária e também não há modo de ter só a paixão e não pensar estrategicamente, aprendendo com as lições do passado e verificando quais dos diversos caminhos propostos por várias visões valem a pena.

O problema é que, infelizmente (apesar da conjuntura estar se alterando), ainda são poucos os comunistas neste mundo. Quando essas ideias escapam dos espaços mais tradicionais de atuação da esquerda, como certos sindicatos, centros acadêmicos, movimentos sociais, etc., há um grande ruído comunicacional, principalmente quando falamos de mídia (jornal, vídeo, internet).

Excluindo as correntes que se adaptam ao que a maioria pensa sem fazer as críticas necessárias, as demais chegam com um discurso que soa, de maneira geral, como um romantismo abnegado de quem dedica sua vida a uma causa nobre, como se bastasse gritar palavras de ordem com várias exclamações, citar exemplos desconexos e siglas ininteligíveis para fazer uma pessoa perceber os absurdos do sistema e ideias complexas que podem superá-lo.

Mas, infelizmente, um punhado de comunistas não faz revolução (desculpe o trocadalho, foi inevitável) - e se faz, ela já nasce degenerada, como no caso da Revolução Cubana, em que os trabalhadores não foram sujeito ativo do processo revolucionário e acabaram sendo governados até hoje por uma burocracia que se perpetuou no poder por ser a parte mais ativa na derrubada do antigo regime.

Ou seja, de qualquer jeito, é preciso convencer mais pessoas de que certas ideias que parecem absurdas e que questionam a raiz dos problemas do capitalismo, como estatização dos transportes sob controle de trabalhadores e usuários, autogestão de fábricas por parte de trabalhadores, etc., não são. E, para isso, o trabalho de base é importante, mas o uso aprimorado e criativo de ferramentas de comunicação também é, porque pode ser eficaz  tanto na relação diária nos locais de trabalho e estudo, quanto de forma mais superestrutural, difundindo conteúdo pela vastidão do mundo virtual.

É muito difícil puxar pela memória uma produção gráfica ou audiovisual da esquerda que seja criativa e abra portas para novas cabeças pensarem a partir dessas ideias. Geralmente os jornais são grandes bíblias, os vídeos têm sindicalistas falando por vários minutos, usando e abusando dos clichês que mais afastam do que aproximam. Pouca linguagem inovadora, poucas sacadas, muita repetição. E o pior é que as técnicas para fazer algo diferente já estão bem difundidas.

No Brasil, quem foge dessa linha é Rafucko, um militante independente que faz vídeos muito criativos e irônicos, com um conteúdo político muito forte. Outro ponto fora da curva é a websérie Marx ha vuelto (da qual falei aqui).

Bom, e eu disse tudo isso para mostrar que, dentro das minhas pequenas possibilidades, tento estimular um jeito diferente de fazer conteúdo dentro da esquerda, a partir da também pequena organização em que atuo (que ainda está longe de ser exemplo em termos comunicacionais). Como tenho mexido com audiovisual, tentei produzir formatos novos de vídeos em algumas oportunidades. Até agora, o que deu mais certo foi o da visita do papa ao Brasil. Mas, na última semana, fiz um vídeo que tenta criticar a repressão do período da Copa de um modo diferente: com a narração futebolística entra os times dos manifestantes e da repressão: