O Terno: muito mais que uma banda de rock qualquer

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O Terno: muito mais que uma banda de rock qualquer

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Uns anos atrás, eu contei uma historinha sobre música: por gostar de um disco de André Abujamra, acabei conhecendo mais a fundo o Karnak; depois garimpei até achar os dois álbuns d'Os Mulheres Negras (da dupla Abu e Mauricio Pereira); e finalmente cheguei aos discos solo do Mauricio, dos quais gosto muito (ganha dos demais, inclusive). Eis que descubro mais um personagem nessa roda de compositores de canções pop com referências vanguardistas e poucos refrões: Martim Bernardes.

Conhecido como Tim, o rapaz esguio e de óculos redondos é filho de Pereira. Tem impressionante habilidade com a guitarra e, mesmo com apenas 20 e poucos anos, demonstra desenvoltura em suas composições (nas letras e nos arranjos), além de ter um timbre vocal que me agrada muito - parecido com o do pai em vários momentos, diga-se. Bem, mas vamos ao que interessa.

66: a música e o disco

Não me lembro como, chegou à tela do meu PC, em meados de 2013, o clipe abaixo, da banda O Terno, composta pelo já citado Tim (guitarras e vocal) com a companhia de Guilherme D'Almeida (baixo) e de Victor Chaves (bateria):



Mantendo o foco apenas na questão musical (deixemos a estética do clipe de lado), a canção chamou muito minha atenção. Em três minutos de um rockzinho estilo retrô, com o baixo comendo solto e uma letra cantada de um jeito apressado (com certa ansiedade), Tim expõe o dilema de todo jovem compositor de música pop: como fazer algo novo sem causar uma estranheza que afaste o público, mas que ao mesmo tempo não seja apenas uma cópia do que já existe? A criativa resposta, um "plágio diferente" nas palavras do vocalista, foi a própria metalinguagem da música, que alonga versos, traz pausas, alterações de velocidade, dispensa refrão e apresenta até uma brincadeira com a música dodecafônica no final - tudo isso mesclado com os diversos questionamentos da letra (exemplo: Então não sei o que eu devo fazer / Pois se eu não posso inovar / Eu vou cantar o que já foi e vão dizer que é nostalgia / E que esse tempo já passou e eu tô por fora do que é novo / Mas se é novo falam mal). O Terno mostrou logo de cara que não era apenas mais uma bandinha de rock com letras vazias que enchem linguiça para um som pouco inovador. Ótimo cartão de visitas.

Fiz o caminho natural e ouvi o disco de estreia dos moleques, também chamado "66", lançado em 2012. O  álbum tem mais quatro composições de Bernardes: "Morto" (que chegou a ser cantada de forma emocionante por Juçara Marçal), "Eu não preciso de ninguém" (em parceria com D'Almeida), "Enterrei vivo" e "Zé, assassino compulsivo". Pra completar o disco, há cinco músicas icônicas da carreira de Mauricio Pereira. Como o "mulher negra" precisava de uma banda para se apresentar quando "seus amigos músicos" estavam impossibilitados de o acompanhar, resolveu chamar o grupo do filho. Deu muito certo, já que os rapazes são excelentes instrumentistas, apesar da pouca idade, e fizeram ótimos arranjos mais "pegados" para os clássicos mauricianos. Dessa forma, instintivamente incorporaram tais músicas ao álbum que os mostrava ao mundo. Nada mais justo, pois a influência de Mauricio na banda vai muito além de algumas poucas músicas, como veremos adiante.

Nas canções próprias, o estilo cru e sessentista do power trio permanece. Há a alternância de riffs que ditam o tom das músicas (como em "Zé..." e "Eu não preciso de ninguém") com canções mais melódicas ("Enterrei vivo"). O grupo não apresenta muitos efeitos e instrumentos adicionais na produção, apesar de eles estarem presentes (distorções de guitarra, alguns teclados e efeitos vocais). Três das cinco canções próprias têm uma temática específica: a morte - e duas delas possuem um estilo um tanto "Maxwell's Silver Hammer" de ser: melodias bonitas e "fofinhas" com letras macabras - tal disparidade com pitada de ironia provoca risos a quem presta atenção nas histórias contadas pelo vocalista - outra característica que irá se repetir no trabalho do grupo.

Em resumo, a expectativa foi confirmada. O Terno se mostrou uma banda que foge do comum nos temas das letras (seja construindo narrativas, falando de morte com pesar e ironia ou usando metalinguagem), dá importância a elas e não tem medo de se assumir como uma banda de rock-pop em termos musicais, mas não sem brincar com isso, flertando com referências vanguardistas.

A transição "Tic Tac - Harmonium"

Com a bola cheia pelos elogios do primeiro lançamento, shows pintaram e eles apareceram mais na mídia. Logo veio o trabalho posterior, o single "Tic Tac - Harmonium", que saiu no fim de 2013, com três músicas. A primeira canção, "Tic tac", versa sobre a luta contra o tempo e tem uma pegada rock bem forte e com alguns metais marcando presença - mais uma continuação do álbum anterior do que uma ruptura. Já a faixa seguinte, "Harmonium" é uma das minhas favoritas. Trata-se de uma balada de melodia muito bonita com um baixo marcado e uma letra reflexiva sobre a morte, mas de um jeito diverso do que foi apresentado anteriormente: há questionamentos singelos, que focam na experiência única de vida de cada um e na angústia do desaparecimento disso com a morte. Essa canção já antecipava um pouco do que seria visto com mais força no segundo álbum da banda. Para fechar, uma música em inglês, sombria e com letra macabra, "Blood stains" (algo como "Manchas de sangue").

Segundo disco e o início da maturidade

Quando se pensa em uma banda brasileira (e paulistana) de rock que faz misturebas, difícil não citar Os Mutantes. E é claro que comparações vieram pra cima dos moleques d'O Terno. Sim, há sons "malucos", há melodia, há rock feito por jovens habilidosos, mas, pelo menos para mim, para por aí. Sem me alongar, digo que Os Mutantes eram mais debochados e escrachados (musicalmente e visualmente) e tinham a presença de Rita Lee, que aguçava tais características. As letras eram mais psicodélicas e "felizes" no grupo dos 60. Talvez as variações bruscas, o baixo com alterações constantes e já citadas canções melódicas (seria isso o "sessentismo"?) sejam pontos de contato em algumas das produções, mas O Terno não soa, nem de longe, como uma cópia d'Os Mutantes. O que me fez estabelecer uma comparação entre as bandas foi um aspecto do segundo disco do grupo contemporâneo, chamado apenas de "O Terno" e lançado em 2014: o início da maturidade.

Não digo maturidade sonora ou como banda. Isso Os Mutantes tinham desde cedo e O Terno também já mostra. Falo da maturidade na vida... Essa coisa de sofrer, ficar velho, perder a inocência. Nos cinco primeiros discos, sem considerar as exceções em algumas canções (como "Dia 36"), pulsava uma alegria juvenil n'Os Mutantes. Quando ela passou, foi de forma arrebatadora e banda não aguentou. N'O Terno, o segundo disco já mostra as marcas da vida no seu compositor principal. O primeiro disco não era alegre, mas tinha algo de "moleque" em tentar simplesmente meter letras macabras em canções bonitas. No segundo álbum, há canções sinceras de amor e de dor, um clichê que a banda decidiu encarar de cabeça erguida - e o fez de forma competente (como em "Eu vou ter saudades" ou "Pela metade"); há um clima mais denso em todo o álbum, algo mais introspectivo e triste, sem esquecer de belas melodias; os sons estão mais cheios (órgãos com presença muito maior e vários jogos de voz) e Tim se dedicou mais à poesia (com destaque para "O Cinza" e "Quando eu me aposentar"), deixando as brincadeiras irônicas mais de lado (apesar de estarem presentes em "Eu confesso" e "Vanguarda?"). Uma continuidade aprimorada é a das historinhas (com "Quando estamos todos dormindo" e "Desaparecido"). Enfim, é um baita disco, e é mais "velho" e mais paulistano, mesmo os meninos ainda tendo pouca intimidade com pelos na cara.

Concepção de música e o não ter medo do fracasso: as heranças d'Os Mulheres Negras

O fato de Tim ser filho de quem é fez uma diferença absurda para O Terno não ser apenas mais uma banda qualquer. Quando adolescentes montam um grupo de garagem, costumam ser meio radicais: só ouvem rock, odeiam bandas rivais dos seus ídolos, repugnam axé, pagode e tudo o que fuja do seu círculo de conhecidos ou que seja desprezado por seus iguais. Se derem sorte, vão abrir a cabeça mais tarde e perceberão o que perderam.

Para ilustrar o contrário disso, dou a palavra a Mauricio Pereira: "Profissão de fé d'Os Mulheres Negras: tudo é música boa e tudo é influência. Ponto final".

Tendo essa base em casa, Tim já pulou uma etapa que muitos nem chegam a ultrapassar ao ver por entre os frágeis gêneros que, muitas vezes de forma ilusória, dividem a música popular (sendo que há muito mais em comum do que diferenças). Só um exemplo: o moleque aprendeu a tocar música caipira com o pai (na dupla Pereirinha & Pereirão), ao mesmo tempo em que pirava nos sons de Beatles e Mutantes, imagino eu.

Outro aspecto importante que certamente veio de berço foi a aversão ao sucesso a qualquer preço. Os Mulheres Negras queriam fazer sucesso? Sim, afinal, quem não quer ser ouvido por muita gente? Mas estavam dispostos a deixar de ser o que eram (e eram uma coisa muito inovadora) para chegar a esse fim? Não. E se tivessem feito isso, seria uma perda terrível para a música pop dos 80 no Brasil - não é à toa que tanta gente boa cita Os Mulheres como influência. Os músicos independentes d'O Terno, dá pra sentir, não deixariam de fazer as brincadeiras que estão criando em nome de um sucesso sem alma.

E não há críticas?

Sim, existem críticas. Considero algumas músicas meio bobas (como "Eu tomei coca e você encheu a cara" - que não entrou em nenhum álbum), vejo-os um tanto inibidos e envergonhados no palco e não gostei do conteúdo da canção "Tribunal do Facebook" que fizeram em conjunto com o Tom Zé - a música é ótima, mas o velho compositor quis ridicularizar quem o criticou por fazer uma propaganda da Coca-Cola para a Copa do Mundo, como se o problema fosse apenas o anúncio para a marca de refrigerantes (não era - era o fato de apoiar um evento excludente e cheio de remoções, violências e etc).

Mas de forma geral, vejo O Terno como umas das melhores coisas que apareceram na música brasileira nos últimos anos. Uma banda de rock sem preconceitos musicais, com ótimos instrumentistas, que não tem medo de inovar ou de se assumir como grupo pop, além de apresentar letras reflexivas (essa, imagino, uma herança só do Mauricio) de temáticas variadas (não é só de amor) e que exigem que o ouvinte preste atenção (o que, na minha visão, valoriza a canção). Tudo isso junto, ultimamente, tem sido bem difícil de encontrar por aí, ainda mais com a qualidade que o trio paulistano oferece. Se eu fosse você, ouviria o trabalho dos guris e ficaria de olho nesses moleques.

Para quem quiser conhecer o trabalho dos caras, basta entrar no site oficial, ou nos perfis do Soundcloud ou do Youtube. Nesses lugares, você consegue ouvir todas as músicas citadas (em alguns dá até para baixá-las gratuitamente).

A charge ali de cima fui eu que fiz e foi inspirada na arte do último disco da banda, mas com uma pitada a mais de estranheza. Longa vida a'O Terno!