Escrevi o texto abaixo após a esdrúxula implementação do novo estatuto do centro acadêmico de Ciências Sociais da USP. Depois de seis reuniões esvaziadas, membros da atual gestão não ouviram propostas de quem se contrapunha às novas regras, mesmo em se tratando de uma assembleia. Referendavam-se nas super democráticas reuniões. Exemplo que exala burocracia e deve ocorrer em muitos outros CAs, DAs, sindicatos pelegos Brasil afora.
Nem gritos de revolta ou suspiros de indignação faziam-no parar. Mais de uma centena de jovens trocavam farpas no saguão do prédio do meio, enquanto ele, sentado na cadeira, ao centro da mesa, calmo, com a voz firme, esforçava-se para fazer o que deveria ser feito: aprovar.
Nada mais justo: estabelecer novas regras para uma assembleia, algo inventado há apenas alguns séculos. Seis reuniões abertas com poucas pessoas teriam, a partir daquele momento, mais valor que a voz da maioria. O motivo: a representatividade tem que ser legítima. O trabalho dos poucos heróis que lapidaram as novas regras do centro acadêmico deveria ser premiado. O objetivo: aprovar.
Trabalhadores dos bancos e correios aguantaram a pressão da mídia e da direção vendida por muitas semanas, um pouco antes desse episódio, sem limite de quórum para realização de assembleia, sem maioria qualificada para aprovar suas decisões. Com os alunos das Ciências Sociais seria diferente. Pouco menos da metade dos estudantes do saguão, revoltada, argumentava com os exemplos acima citados e outros mais.
Em vão. A pequena maioria também tinha o objetivo na mente. A legitimidade tinha que ocorrer. O estatuto deveria ser aprovado. Havia ali um sentimento de bem privado: “ o estatuto é nosso”. Os olhares desprezavam os argumentos alheios, quase criando uma barreira física, sentida mais fortemente pelos ouvidos da minoria ao receber os xingamentos despolitizados. “Aprovar, aprovar, aprovar”!
À medida em que o tempo passava e as propostas eram sistematicamente aprovadas sem direito à elaboração de novas alternativas pelos estudantes presentes, a pele do rapaz da mesa se acinzentava e os óculos endureceriam. O cabelo tomava formas pontiagudas, que lembravam uma coroa, e a intransigência encontrava, aos poucos, sua equivalência material. Não adiantava. Pouco importava se todos estavam numa assembleia ou numa simples reunião para aprovar algo pré-estabelecido. A faculdade poderia cair, as vassouras poderiam se insurgir e esparramar pelo chão todo o lixo que a exploração sem escrúpulos exige diariamente que mãos cansadas de faxineiras negras limpem; estudantes poderiam ser ameaçados de expulsão após anos de combates a favor de questões democráticas como permanência estudantil; a PM poderia entrar no meio da “assembleia” para revistar todos os elementos suspeitos, com truculência e petulância. Nada disso alteraria o compasso, o ritmo, o objetivo. Nada disso vai mais importar – o estatuto é mais importante do que a luta real. O mecanismo. A bolha. Leitura da proposta. A possibilidade de supressão. Votação. Proposta aprovada. Aprovada. Aprovada.
O subjetivo tempo hábil atropelou a leitura na íntegra das novas propostas. Os fiéis seguidores das mesmas, 60% do total, concordaram em legitimar o “novo estatuto”. O sorriso robótico do coroado rapaz da mesa tinha um tom superior de ironia. Ele disse, bem feliz: “aprovado”!
Aprovado o engessamento. Aprovada a burocracia. Aprovada a burrocracia.
Mas ele se esqueceu que a revolta, quando incitada, não precisa ser aprovada. Ela cresce sem mecanismos.
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Metaliguagem: primeiro parágrafo.