-Eu não sei se nasci com você. Acho que não. São processos, vivências, coisas das quais você não se lembra. A maior parte ocorreu na infância e no início da adolescência, envoltas no berço de neuroses que é a família. Elas me moldaram e te fizeram. O meu êxtase é seu vacilo, é quando eu me sinto mais plena, quando eu ouço a palavra mal dita no seu gaguejar, os olhos se expremendo, a boca seca, a perna que avança e recua no meio do passo, as mãos enterradas nos bolsos, a cabeça baixa, a voz inaudível, a dúvida. Eu te mostro a sua incapacidade e ela se torna certeza. Certeza da minha vitória. Eu venço. Eu sempre venço.
-Mas é que... na verdade... é... eu...
-Hahaha é exatamente isso! Lembro-me de tantos momentos idênticos a esse que me fizeram desabrochar o sorriso mais venenoso nos lábios alheios. O prazer cítrico do deboche, da sua humilhação pública ou privada. Desde a infância, quantas vezes? Tenho recordações deliciosas. Na sala de aula, no intervalo, nas brigas conjugais dos seus pais. Não foi sempre assim, mas eu cresci com o seu sofrimento. Tornei-me forte e poderosa. Você reconhece minha autoridade e sabe que estou certa.
-Eu sei. Você me paralisa. É um congelar sem ter frio, tampar a boca sem mordaça. É um eterno desconforto, semelhante a um acorrentamento. Você não me deixa viver, não me deixa poder ser ridículo, gritar, dançar, falar alto, falar merda, falar. Sempre me coloca abaixo dos demais, dos inteligentíssimos e perfeitos medíocres confiantes. Eu sei coisas, não sou um imbecil. Tenho experiência suficiente para fazer certas escolhas, ter responsabilidade sobre elas e saber me posicionar. Você me trata como um pedaço da bosta mais asquerosa, mas todo mundo é sujo.
-Eu não nego, meu caro, eu não nego. Mas as coisas que você sabe... Você também as deve a mim. Se eu sou teu karma, o peso que te curva as costas e te põe a rastejar, também sou a luz guia da sua consciência. Ou você acha que crianças populares e desinibidas têm crises existenciais quando crescem? Uma ou outra, bem de vez em quando. A maioria atualmente está enfurnada numa rotininha de merda, com emprego estável, contas pagas, cargo de gerência, status, mulher e filhos. Se você é crítico, se tem crises, se acha que sabe alguma coisa, é graças a mim. Eu te fiz inseguro e a inseguraça fez a sua introspecção buscar o questionamento, o embasamento, a crítica.
-Se você delineou os meus caminhos um dia, hoje você os tolhe. Tenho uma amiga que convive com situação semelhante. Não sei se você se lembra. Quando a encontrei a cerveja tinha me libertado um pouco de você, mas o assunto te envolvia. Ela dizia, com uma voz tranquila e uma serenidade impressionante, que te enfrentava com sucesso. Dava aulas, expondo-se para dezenas de alunos. Arriscou-se até a ser atriz. Inevitavelmente pensei em mim. Já fui vocalista de banda adolescente, diretor de rádio universitária, ativista do movimento estudantil no interior, repórter de jornal diário que precisa entrevistar autoridades, sem vacilar. Aí ela disse que essas conquistas são ótimas, mas fugazes e não cumulativas. “O meu natural não é isso”, constatou, fazendo uma analogia com o sado-masoquismo. Eu consigo te enfrentar, mas você volta. Você sempre volta e me murcha.
-Olhe para o seu rosto no espelho. Eu estou em você na sua cara fechada, nos dentes cerrados e na barba e cabelo que escondem o rosto! O seu natural é comigo! Eu sou você! A sua personalidade só é assim por minha causa! Você é você porque eu existo! Esses dedos que batem nas teclas do computador enquanto você escreve não conseguem nem me fazer mais dominadora e agressiva neste estúpido diálogo imaginário simplesmente porque você tem vergonha de se expor! Porra, se o personagem que você inventa sou eu, faça-me de verdade! Você é fraco. Fraco e inseguro.
-Você está dentro de mim e me dilacera, esbugalha meus olhos para as lágrimas escorrerem como sangue. Você ouve meu grito entalado? Vê a cara de desespero quando eu deito no chão? Você e eu somos eu. Sem você eu não sou eu. Posso ainda te amar se te odeio cada vez mais? Posso me libertar de você se somos a mesma coisa?
-Já te provoquei, mas não quero bater boca. O diálogo sóbrio é nosso preferido. Você já me aceitou. Enfrentou-me várias vezes. Desafie-me novamente. Tente, eu não te impeço de tentar. Torço para suas lágrimas, seu sangue e seu grito se desprenderem. Que façam parte de um coro, que ganhem o mundo. Corra e conte os passos, os pulos. Meça até onde podes ir, mas não tenha a ilusão da liberdade. A corrente nos liga e, mais do que isso, nos prende. O comando é meu. Você sabe, meu amor... eu sempre vou voltar.
Metalinguagem: se esse sofrimento serve para alguma coisa, acho que é para pensar. Absurdamente difícil tê-lo escrito.