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quarta-feira, 16 de março de 2011
Um animal
O corpo se liga ao chão por um emaranhado de varizes. Elas recobrem todas as veias de ambas as pernas, cada dia mais roxas. Estruturas que sustentam um corpo muito maltratado. Duas hérnias no umbigo auxiliam a consciência a dar uma resposta auto-enganadora para o sobrepeso. A boca tem dentes falsos que mastigam com dificuldade e passam o alimento para as papilas gustativas já ralas, mas responsáveis pelo único prazer que sobrevive.
A vagina, que proporcionou momentos inesquecíveis, tem verrugas e infecções. Os seios, objetos de prazer alheio e próprio, fonte de alimentação dos filhos, não encontram outras costas para roçarem. Estão caídos, doem.
As costas trabalharam tanto que diminuíram dez centímetros nas últimas décadas e foram capitulando, curvando-se. O esmalte cor-de-rosa enfeita as unhas de cutículas feitas - o único luxo é ir à manicure. As mãos de pele fina que ainda cozinham, passam, lavam e limpam, apresentam manchas da idade, bolinhas de um marrom escuro.
A expressão facial enrugada tenta corrigir o caminho dos pelos caídos ao longo dos anos, com a ajuda do lápis de sobrancelha. Olhos operados de catarata enxergam mal, mas veem muita coisa pela janela, mostram para o cérebro e para a boca o que deve ser descrito com palavras que caíram em desuso.
Os olhos viram toda a vida passar na rua, pela janela eletrônica, pela janela do quarto.
A saudade de um tempo maravilhoso que nunca existiu. A esperança de uma época melhor que nunca virá. A eterna espera, o elencar de metas fúteis - a formatura dos netos, o casamento dos netos, a compra do carro dos netos, da casa dos netos. As mentiras e indiretas do egoísmo sublimadas nas “conquistas” dos netos. O viver sem motivo. O achar isso normal.
Para uma velha, a noite chega mais cedo. O corpo cansado emite sons, resmunga. Ela se deita enquanto a cama range. Duas, três horas se passam de sonhos (outro resquício de prazer) com um tempo que não existiu, com pessoas muito idealizadas. A bexiga a acorda. Sussuros. A cama range novamente. Com muito esforço ela consegue se sentar. Tosse. Arrasta o balde guardado debaixo da cama. A vagina já livre da calcinha expele um jato contínuo, que bate duro no plástico, emite um som triste que ecoa pela casa velha, anacrônica, enche o recipiente e respinga no chão, repleto de tacos soltos.
É um ser humano. Um animal histórico que apreendeu as evoluções dos homens educado pela cultura da época. Tem noção da morte que se aproxima. Ao mesmo tempo, é a morte que faz com que se torne, a cada dia, um animal. Apenas.
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Metalinguagem: escrevi após assistir "Cisne Negro", de Aranofsky, e ler "A Metamorfose", de Kafka.