Mercy Zidane: janeiro 2011

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Emicida e o rap nova geração

Não tenho muito repertório para falar de rap. Comecei a curtir em 2009. Antes, ouvia, prestava atenção, mas não pirava nas letras ou no som como ocorre hoje em dia, conseguindo diferenciar o estilo e a levada de cada MC ou grupo.

E justamente na época em que comecei a ouvir Rap é Compromisso - disco sensacional de Sabotage, chegou aos meus ouvidos (não me lembro como) a música "Sozim", de Emicida. Baixei a mixtape Pra quem já mordeu cachorro por comida, até que eu cheguei longe e gostei muito. Fiquei viciado.

Várias coisas chamaram minha atenção. Emicida interpreta as músicas, mas não apenas no sentido de executá-las. Tenta passar sentimento sobre o que está cantando. Quando a letra pede, ele sussura, grita, faz interjeições. Interpreta num sentido mais teatral, algo pouco comum no rap.

Esses comentários já demonstram que, para fazer o seu som, não basta o MC "ir pro estúdio e dar REC" - como diz a letra de "Vai ser rimando". As bases são mais elaboradas que o normal e misturam a batida característica do estilo com ritmos como samba, reggae e rock. Li uma entrevista em que Leandro (nome verdadeiro por trás da alcunha) revela ter preocupações em fazer um rap mais brasileiro.

E no elemento principal, a letra, o MC também varia. Há rimas mais introspectivas, outras românticas. Ele também fala sobre as rinhas de MC's que o deixaram famoso e, obviamente, da pobreza da favela e do sentimento de revolta comum e essencial para todo rapper. Tudo isso permeado por comparações inusitadas nas letras engraçadas, referências sobre grupos nacionais e até sobre cinema.

Para mim, Emicida não é apenas um cara com uma grande habilidade técnica em improvisar. É um excelente intérprete e tem méritos na criação das letras e na elaboração de bases. O conteúdo, às vezes criticado por não ser tão combativo quanto o dos discos iniciais de Racionais, tem a ver com o contexto em que foi produzido. Leandro tem 25 anos e sofreu com a miséria, mas não sofre mais. Eu diria que ele faz parte de uma geração que se beneficiou com as reformas de Lula, considera que toda a vida na periferia está "melhorando" e basta ter um esforço individual para que isso ocorra. É uma galera que quer mudar o sistema dentro dele, tentando não se corromper ao longo do caminho. Não concordo com essa visão, mas não vou exigir uma consciência política de um cara que cresceu e teve contato com outras referências para formar a seus pensamentos.

A questão é que Emicida está ganhando mais espaço e novas oportunidades estão surgindo. Muitas delas são contraditórias com o que suas letras expressam. Em "Hey Rap!", afirma que "muitos se venderam por notas de 100". Depois de um tempo, ele gravou um clipe com NX Zero. "Ah, é o trampo dele, ele tem que sobreviver, vai ganhar uma grana".

Discordo. Os Racionais, em 1998, no auge das possibilidades comerciais, recusaram convites, desdenharam dos clipes da MTV, exaltaram que o público deles era a periferia e, muito provavelmente, não fariam parcerias com branquinhos para quem as mães deles lavaram roupas por muitos anos. Até hoje, apesar de ter perdido a fúria do início, Mano Brown e os outros ainda fazem reuniões e decidem por voto onde eles devem ou não se apresentar.

Se o Leandro não se vendeu, ele está assumindo que gravou com o NX Zero porque gosta da banda. Isso seria possível? Se a grana falou mais alto que as convicções ideológicas, mesmo não sendo uma questão de vida ou morte (sobrevivência para comer), ele se vendeu sim.

Fui a um show do Emicida no Sesc Pompeia, no último sábado. Em cerca de 80% de suas intervenções com o público, nos intervalos das músicas, ele ironizava críticas sobre sua nova postura. Nas músicas recentes da mixtape Emicidio, há muitas rimas com esse tipo de conteúdo - que faz um ataque a quem o acusa de vendido. Se ele não se vendeu, por que se preocupa tanto com essa questão?

"Se sua vida não é seu rap, seu rap é piada pra mim" dizia Emicida na primeira mixtape. No clipe com NX Zero, afirma "Venha de onde vier, tanto faz, eu só quero encontrar a minha paz". Na nova mixtape: "Quero problemas fúteis, preocupações inúteis", ou "Depois que se acostuma com a primeira classe é foda" e "Fui quem obedece agora eu sou quem manda, vou ver o que acontece, mas lá da varanda. É tipo um trampo social, sério, tô dando a chance de ver como nasce um império". É, podemos dizer que Leandro se manteve coerente com a primeira frase, mas a vida mudou. E é aí que está a essência de quando dizem que ele se vendeu. Não é apenas uma relação comercial, é o fato de exaltar o "mérito" que teve para subir na vida, de esbanjar a situação que tem atualmente e despolitizar as letras. E, para mim, é isso que está acontecendo.

E nesse show que fui, Kamau, outro rapper da nova geração, apresentou-se junto com Emicida. Em um intervalo entre as músicas, os dois conversaram sobre transporte público, novamente ironizando quem os criticava porque agora estavam andando de metrô em vez de pegarem busão lotado. Após o término do show, um amigo meu pediu para Kamau dar um salve na galera sobre o ato contra o aumento da passagem do busão, que será no próximo dia 27, às 17h, no centro de São Paulo. A resposta do MC, que estava com o microfone na mão, foi:

-Nem vira, tá rolando um som aí, é foda.

Isso é ser rua? Todo mundo da favela pega busão e não custaria nada avisar um público que tem possibilidades reais de comparecer ao ato. A resposta resume de certa forma o rap nova geração. Esteticamente atraente, calcado no mérito individual e na tentativa (a meu ver, certamente frustrada) de mudar o sistema por dentro.

Como diz a letra de "Beira de Piscina", em que Emicida afirma estar no pique "Lula o Filho do Brasil". Acho que é isso. Um rap compatível com a ilusão que Lula proporcionou.
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Metalinguagem: gosto de Emicida, como disse no início, o que não me impede de criticar principalmente o conteúdo das últimas letras.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

"Que vergonha deve ser: reprimir trabalhador pra ter o que comer"



A tarifa de ônibus aumenta de já abusivos R$ 2,70 para R$ 3 e é assim que os policiais de Kassab e de Alckmin agem contra estudantes que caminhavam em ato, na região central de São Paulo, protestando contra o óbvio, na tarde de ontem.

Saldo: dezenas de manifestantes presos no 3o Distrito Policial (esquina da R. Aurora com Av. Rio Branco), muitos jovens espancados e a mídia tradicional dando pouco destaque.

E o mais engraçado foi ver, após a dispersão do ato, um policial e sua namorada caminhando tranquilamente rumo à estação Anhangabaú, para pegarem o metrô. Provavelmente muitos colegas dele voltaram para as suas casa de ônibus... sem pensar que há poucas horas estavam atirando em pessoas que lutavam pelo direito de todos que dependem de transporte público. A farda não deixa o policial pensar.



Na próxima quinta-feira: novo ato contra o aumento da passagem, na Av. Paulista.
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Metalinguagem: o vídeo e a charge são de Carlos Latuff - vale muito a pena entrar no twitter dele, principalmente na página das charges.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Onze

Aí o ano veio e, à beira do mar, tudo parecia estar indo bem.
Um coqueiro ali, outro lá, um caminho de pegadas, risadas, desencontros e encontros inacreditáveis.
E eu dizia que era só uma passagem de tempo estabelecida pelo homem, as coisas não podem melhorar assim, de uma hora pra outra.
Mas o mar não mente e mostra que a maré existe. E ela estava tão a favor que começou a se mover contra, misturou pessoas, histórias (que não deveriam se misturar, mas que só com essa junção se fizeram possíveis).
De zero a mil, a chance de tudo acontecer do jeito que aconteceu nem entraria nas estatísticas. Tudo coincidiu tão assustadoramente que tive medo, medo de dar certo e de não dar certo, de deixar o que poderia dar certo não dar certo.
Mas houve um encontro, três olhares assustados e recíprocos, dúvidas, palpitações, uma mensagem de texto, uma fisionomia na mente - de cabelos encaracolados - e um sonho tão real que deixa de ser clichê.


Ela só atendia o telefone e falava coisas que poderiam ser mentirosas, mas que, na hora, eu acreditava.