Mercy Zidane: janeiro 2010

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sobre os monstros que habitam dentro de nós

Gosto das obras feitas para crianças. Não de todas, é verdade. Aprecio as que não as subestimam.

Sou grande fã de "O Pequeno Príncipe", de Saint-Exupéry, por mais que as misses de todo o mundo o reivindiquem, sem o entenderem. Emocionei-me com "Os Meninos da Rua Paulo", de Férenc Molnar. Recentemente, fiquei viciado nas músicas do grupo "Pequeno Cidadão", com sua psicodelia para crianças.

Mas foi sem pretensões do tipo que entrei na sala de cinema para assistir "Onde Vivem os Monstros", de Spike Jonze (adaptação do livro homônimo, de Maurice Sendak), no último final de semana. Logo percebi que a escolha foi acertada e que o filme não subestimaria crianças. Portanto, não era feito apenas para crianças.

O enredo conta o drama de um menino de seis ou sete anos que tem pouca atenção da mãe e da irmã mais velha.

Não é a falta de amor que o torna solitário, mas as imposições da rotina sobre seus parentes, como a necessidade da mãe de manter o emprego e as atitudes adolescentes de sua irmã.

Convenhamos, mesmo com tais ressalvas, é difícil entender a indiferença, por mais sentido que ela tenha. Sentindo-se só e com ódio (lembremos que tal sentimento está muito próximo do amor), o garoto Max comete atitudes de uma radicalidade emocional pouco comum em crianças. Libera seus monstros, envergonha-se, foge.

A fuga é para dentro de si, onde materializa seus monstros. É como se cada um deles fosse uma pessoa com personalidade distinta, com as quais temos de lidar ao longo da vida. Ao mesmo tempo, os monstros são nossos sentimentos. Calmos, fortes, felizes, loucos, depressivos, sãos.

Os sentimentos gostam do garoto. Ele os domina, mas não sem se ferir e sem machucar os monstros-sentimentos. E as chagas são irreversíveis.

Trata-se de um filme sobretudo humano. Paradoxalmente, ao lidar com monstros e fantasias, mostra um humano verdadeiro. É um embate tão forte do homem com seus sentimentos mais irracionais, que parece não ser humano... mas é exatamente por isso que o é. O garoto e os monstros se descontrolam, ferem, se machucam, esquecem a racionalidade que nos torna "diferentes".

Durante a vida inteira fazemos isso.
____________________
Metalinguagem: fiz este post por ter sentido certa culpa após assistir ao filme. Peço desculpas sinceras aos amigos que já precisaram de mim e eu não os compreendi. Peço desculpas sinceras aos amigos que tentei monopolizar de forma egoísta, sem os compreender.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mudança no visual

Há algum tempo eu estava insatisfeito com o layout do blog. Hoje, resolvi mudar. Explico:

-Queria algo mais simples. O visual antigo estava me dando a impressão de que havia muita frescura.

-Queria algo mais impactante. O vermelho forte e a camisa do Zizou conseguiram fazer isso.

Mantive o fundo branco com texto preto em cima (a melhor maneira de ler) e a estrutura, bem reformulada ao longo do ano passado.

Espero que o leitor tenha gostado.
______________________
Metalinguagem: tenho costume de fazer um post para anunciar mudanças estéticas. Ainda nesta semana farei uma postagem com conteúdo de verdade.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

As desculpas inócuas de Boris

No segundo post do ano, pensei em falar sobre mil coisas, mas escolhi algo relativamente velho, se levarmos em conta a velocidade fútil das informações jornalísticas.

Na semana passada, Boris Casoy, âncora televisivo renomado na grande mídia, cometeu a gafe mais preconceituosa de 2009 ao humilhar em rede nacional os garis participantes do vídeo promocional de ano novo da TV Bandeirantes, antes do intervalo do Jornal da Band.

Erro cometido, Boris veio a público se retratar no dia seguinte, no mesmo programa. Como um jornalista "ético", limitou-se a pedir desculpas aos garis e aos telespectadores pelo vazamento de som e por sua frase infeliz.

Agora imagine a cena análoga: você tem um amigo negro e você não é negro. Ao se despedirem, você cumprimenta seu amigo, mas faz um grave xingamento racista a ele. O rapaz ouve sua frase, vai embora e tira satisfação com você no dia seguinte. Como resposta, você se desculpa e diz que não era para ele ter ouvido.

Boris não se dignou a "cutucar a merda" porque sabia que, mesmo se apresentasse argumentos, ele não teria defesa. Afinal, como o âncora se salvaria de uma fala tão preconceituosa, incrustada em seu pensamento aos 68 anos de idade? Mesmo assim, a frase e o pedido de desculpas ridículo mostraram a cabeça racista da elite brasileira que, na frente das câmeras, prega o discurso da igualdade, mas nas conversas de boteco, na informalidade, na vida privada, trama e executa a manutenção ou o aumento das disparidades.
________________________
Metalinguagem: post relâmpago também inspirado pela postagem do Byron & Shelley.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Subúrbio para morrer, vou dizer, é mole

Ouvi a música "O Trem", do RZO, em dezembro último. Fiquei pensando sobre como falaria dela num post.

Cheguei à conclusão de que o melhor a fazer seria disponibilizar a letra e o clipe aqui e dizer que, nos trens da CPTM da minha região (linhas 11 e 12), as coisas continuam bem parecidas, apesar de a canção ter sido composta em meados dos anos 90.

Bom ano a todos.



O trem

Realidade é muito triste
Mas é no subúrbio sujismundo
O submundo que persiste o crime
Pegar o trem é arriscado
Trabalhador não tem escolha
Então enfrenta aquele trem lotado
Não se sabe quem é quem, é assim
Pode ser ladrão, ou não,
Tudo bem se for pra mim
Se for polícia fique esperto Zé
Pois a lei da cobertura pra ele
Te socar se quiser
O cheiro é mal de ponta a ponta
Mas assim mesmo normalmente
O que predomina é a maconha
E aos milhares de todos os tipos
De manhã, na neurose, como
Pode ter um dia lindo
Portas abertas mesmo correndo
Lotado até o teto sempre está
Meu irmão vai vendo
Não dá pra agüentar, sim
É o trem que é assim, já estive, eu sei, já estive
Muita atenção, essa é a verdade
Subúrbio pra morrer, vou dizer é mole

Subúrbio pra morrer, vou dizer (é mole)
E agora se liga, você pode crer (é pra gravar, tá ?)
Todo cuidado não basta, porque (é só um toque)
Subúrbio pra morrer, vou dizer (é mole)
Confira de perto, é bom conhecer (é mole)
E agora se liga, você pode crer (é pra gravar, tá ?)
Todo cuidado não basta, porque (é só um toque)
Subúrbio pra morrer, vou dizer ...

Todos os dias mesma gente
É sempre andando, viajando,
Surfando, mais à mais não teme
Vários malucos, movimento quente
Vários moleques pra vender,
Vem comprar, é aqui que vende
Quem diz que é surfista, é
Então fica de pé, boto mó fé, assim que é
Se cair vai pro saco
Me lembro de um irmão, troço chato
Subia, descia por sobre o trem, sorria
Vinha da Barra Funda há 2 anos todo dia
Em cima do trem com os manos
Surfistas, assim chamados são popularmente
Se levantou e encostou naquele fio,
Tomou um choque
Mas tão forte que nem sentiu, foi as nuvens
Tá um Deus, mano Biro sabe
Subúrbio pra morrer, vou dizer é mole

... E eu peço a Oxalá e então,
sempre vai nos guardar
Dai-nos forças pra lutar, sei que vai precisar
No trem, meu bom, é assim, é o que é
Então centenas vão sentados e
Milhares vão em pé
E em todas as estações, ali preste
Atenção nos PF's
O trem para o povo entra e sai
Depois disso, o trem já se vai
Mas o que é isto ? Esquisito
E várias vezes assisti
Trabalhador na porta tomando borrachadas
Marmitas amassadas, fardas, isso é lei ?
Vejam são cães, só querem humilhar toda vez
Aconteceu o ano passado em Perus
Um maluco estava na paz, sem dever
Caminhava na linha sim, à uns 100 m
Dessa estação, preste atenção, repressão
Segundo testemunhas dali, ouvi
Foi na cara dura assassinado, mas não foi divulgado
E ninguém está, não está, ninguém viu
As mortes na estrada de ferro Santos - Jundiaí
E ninguém tá nem aí, Osasco - Itapevi,
do Brás a Mogi ou Tamanduatei
É o trem que é assim, já estive, eu sei, já estive
Muita atenção, essa é a verdade
Subúrbio pra morrer, vou dizer é mole
____________________
Metalinguagem: um post relativamente mais curto para abrir o ano.